Retirantes / Cândido Portinari
Diz-se
que a Bahia já teve seu Século de Péricles, uma alusão ao período
efervescente que se situou nos anos 50 e na primeira metade dos 60,
quando Salvador congregava o que havia de mais criativo na expressão
artística. Estimuladas pela ação da Universidade Federal da Bahia,
comandada, e com mão de ferro, pelo Reitor Edgard Santos, as artes
desabrocharam com o surgimento do Seminário de Música, da Escola de
Teatro, do Museu de Arte Moderna, dos inesquecíveis concertos na
Reitoria, da porta da Livraria Civilização Brasileira na rua Chile, dos
papos ao por do sol frente à estátua do Poeta, no bar e restaurante
Cacique, dos debates calorosos da Galeria Canizares (no Politeama), da
"boite" Anjo Azul (na rua do Cabeça), entre tantos outros pontos que
faziam da Bahia um recanto pleno de engenho e arte.
Na
Escola de Teatro, por exemplo, que, inicialmente, foi dirigida por
Martim Gonçalves, montava-se, lá, de Bertolt Brecht, passando por Ibsen,
Eugene O'Neill, entre tantos, a Strindberg, com um rigor inusitado, e
tal era a excelência de seus espetáculos que vinham pessoas do sul do
País, e até do exterior, vê-los encenados "in loco". No curso de
preparação de ator, o estudante levava alguns anos para poder participar
de uma montagem teatral, iniciando a sua trajetória como um mordomo
mudo ou de poucas falas. Somente ter o seu nome no programa da peça já
era um prêmio, uma alegria, um consolo.
O livro Impressões Modernas - Teatro e Jornalismo na Bahia,
de Jussilene Santana, analisa a configuração do teatro como temática na
imprensa baiana em meados do século XX e, pela primeira vez, faz
justiça a Martim Gonçalves, o responsável pela excelência das montagens
teatrais, criador da Escola de Teatro (que hoje tem o seu nome), mas
muito criticado na sua época e até mesmo denegrido pelos opositores.
Após a leitura deste livro imprescindível, a conclusão é única e
inequívoca: sem Martim Gonçalves não se teria um teatro baiano do nível a
que chegou, ainda que, décadas depois, tenha perdido todo o seu vigor,
transformando-se num grande proscênio destinado à proclamação de
"besteiróis", honradas as exceções de praxe.
Cinqüenta
anos depois, meio século passado, a realidade cultural baiana é uma
antípoda da efervescência verificada, uma época que foi chamada,
inclusive, de "avant garde" pela sua disposição de inovar, pela marca de
vanguarda da mentalidade de seus artistas e intelectuais. Atualmente, a
Bahia regrediu muito culturalmente a um estado, poder-se-ia dizer,
pré-histórico, e o "homo sapiens" do pretérito se transformou no
"pithecantropus erectus" do presente. Aquele estudante do parágrafo
anterior, por exemplo, não existe mais.
Na
Bahia miserável da contemporaneidade, qualquer um pode pular em cima de
um palco, qualquer um se sente apto a dirigir uma peça, "mexer" com
cinema, fazer filmes. Com as sempre presentes exceções de praxe, o
teatro que se pratica na Bahia é um teatro besteirol, que faria corar
aqueles que participaram da antiga escola de Martim Gonçalves.
A
Bahia não está apenas mergulhada em bolsões de pobreza, na violência
diuturna e desenfreada, com seu povo excluído de tudo - e até mesmo dos
cinemas, mas do ponto de vista cultural a miséria é a mesma. Miséria
cultural, descalabro, ausência do ato criador, apatia, desinteresse.
Eventos existem para a satisfação de pseudo-intelectuais que não possuem
as bases referenciais necessárias para a compreensão do que estão a ver
ou a ouvir. O momento presente, se comparado aos meados do século
passado, assinala uma regressão cultural sem precedentes. Como disse
Millor Fernandes, a cultura é regra, mas a arte, exceção, o que se
aplica sobremaneira sobre o estado atual da cultura baiana. Cultura se
tem em todo lugar, mas arte é difícil, e a arte baiana praticamente não
existe.
Com
o desaparecimento dos suplementos culturais e o advento de normas
editoriais que privilegiam o texto curto, além da incultura reinante
pela assunção do império audiovisual em detrimento da cultura literária
(vamos ser sinceros: ninguém hoje lê mais nada), a crítica cultural veio
a morrer por falência múltipla das possibilidades de exercício da
inteligência numa imprensa cada vez mais burra e superficial.
Sérgio
Augusto, crítico a respeitar, que militou nos principais jornais
cariocas, em entrevista ao "Digestivo Cultural", site da internet (vale a
pena lê-la na íntegra:
http://www.digestivocultural.com/entrevistas/entrevista.asp?codigo=10),
do alto de sua autoridade no assunto, afirmou que o jornalismo cultural
está morto e enterrado, ressaltando que se fosse um jovem iniciante não
entraria mais no jornalismo porque não vê, nele, perspectivas para a
crítica de cultura (área de sua especialidade).
Dava
gosto se ler o Quarto Caderno do Correio da Manhã com aqueles artigos
copiosos, imensos, que abordando cultura e artes em geral, eram
assinados por Paulo Francis, Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins, José Lino
Grunewald, Antonio Moniz Viana, entre tantos outros. A rigor, todo bom
jornal que se prezasse tinha seu suplemento cultural. Aqui mesmo em
Salvador, vale lembrar o do Diário de Notícias e o do Jornal da Bahia
(em folhas azuis). Atualmente, resiste o Suplemento Cultural de A Tarde
(mas, mesmo assim...).
A
inexistência da crítica de arte não diz respeito apenas ao
soteropolitano. É uma constatação geral no jornalismo brasileiro. Mas, e
os cadernos culturais e as ilustradas da vida? Caracterizam-se pela
superficialidade e servem, apenas, como guia de consumo, com suas
resenhas ralas. Atualmente, os cadernos dois, assim chamados, são até
contraproducentes porque elogiam o que deveriam criticar, colocando na
posição de artistas personalidades que deveriam, no máximo, estar no
departamento de limpeza de estações rodoviárias.
A
crítica de arte serve justamente para isso: para, construtivamente, sem
insultos, mas com argumentos sólidos, desmontar aquilo que não presta.
Que falta não faz uma crítica de teatro séria, que, semanalmente, venha a
apreciar o que se está a apresentar na cidade como literatura
dramática! Ou uma crítica de artes plásticas. A interferência de um
crítico faria corar muitos pintores que estão expondo na Bahia e posando
como artistas. Assim também uma crítica de cinema que fosse menos
paternalista com os "coitados' dos cineastas baianos cujas imagens são a
de "franciscanos" em busca da expressão cinematográfica, mas cujos
resultados, em sua grande maioria, remetem o espectador aos braços de
Morpheu, quando não à aporrinhação.
Para
se ter um pequeno exemplo: a emissora de tv de maior audiência da Bahia
apresenta todos os dias, em seu noticiário, grupos de pagode, de
arrocha, entre outros, que passam a impressão de que os soteropolitanos
não possuem talentos musicais - o que não é verdade.
Se
a miséria da cultura baiana é cristalina, a miséria da crítica cultural
é, também, imensa. Que esmola pode ser dada para se acabar com ela?
Texto: André Setaro
A imagem. Retirantes, de Portinari.