sábado, 5 de setembro de 2009

A HORA DO CINEMA DIGITAL

Por André Setaro


Um dos mais competentes especialistas em cinema digital no Brasil., Luiz Gonzaga Assis De Luca acaba de lançar A Hora do Cinema Dgital - Democratização e Globalização do Audiovisual pela Imprensa Oficial de São Paulo dentro da Coleção Aplauso (Cinema & Tecnologia). Num momento em que o processo digital está a revolucionar não somente a produção, mas, também, a exibição cinematográficas, esta publicação é de leitura imprescindível, principalmente quando se verifica que várias pessoas ainda não entenderam bem o que vem a ser o digital em oposição ao antigo celulóide. Com excelente prefário de Gustavo Dahl, o livro de Luiz Gonzaga De Luca vai a fundo na questão.




O autor é homem de cinema, conhece profundamentos as injunções do mercado exibidor. Quando trabalhou na extinta Embrafilme, a sua participação foi decisiva para fazer da empresa uma líder do mercado, a atuar como seu distribuidor responsável por um período de três anos. Finda a experiência, que, para ele, foi muito importante, trabalhou na produção de desenhos animados e licenciamento de personagens e se assinala aqui outro pioneirismo: a da distribuição do videocassete doméstico. Há 20 anos, atua no setor da exibição cinematográfica, ocupando, atualmente, o cargo de diretor de relações institucionais do Grupo Severiano Ribeiro, a maior empresa exibidora de capital nacional. É também professor do curso de pós-graduação Film & Television Business da Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Administração Pública,doutorou-se em Ciências da Comunicação na USP. Em 2004, lançou, também pela Aplauso, Cinema Digital: Um Novo Cinema?




Sobre o livro recente, que já inicei a sua leitura, algumas informações tiradas do site da Livraria Saraiva, onde a publicação pode ser encontrada (inclusive pela internet), entre outras boas livrarias brasileiras:




"As tecnologias digitais vêm provendo a substituição dos equipamentos de cinema. Embora muitos filmes já sejam gravados com câmaras digitais e existam mais de 6 mil cinemas digitais no mundo, ocorrem sérios entraves na substituição tecnológica, a começas pelas dificuldades de obtenção dos recursos necessários para financiar a compra dos novos aparelhos. A Hora do Cinema Digital - Democratização e Globalização do Audiovisual não é apenas uma atualização do livro anterior de Luiz Gonzaga Assis de Luca, Cinema Digital - Um Novo Cinema?. Mais do que responder às questões tecnológicas que ficam em aberto no livro anterior, e que se solucionaram nos últimos anos, discute as questões decorrentes da convergência digital que, ao mesmo tempo, une e separa a indústria cinematográfica. Este livro preenche uma lacuna na literatura da área, abordando um tema atual que interessa não só aos profissionais e aos interessados no cinema, como aos que atuam nas diferentes atividades do audiovisual: distribuidores de homevideo, criadores de games e produtores de programas para diferentes meios e veículos: televisão, telefonia, eventos e internet."

terça-feira, 1 de setembro de 2009

DUAS HISTÓRIAS DA BAHIA

*Por André Setaro



(1.) O sonho de Walter da Silveira era implantar, na Universidade Federal da Bahia, um curso de cinema. Quando do reinado de Edgard Santos, chegou, inclusive, a publicar na imprensa artigos sugerindo a sua criação. Não sei se um curso de graduação, como o atual da FTC, mas, talvez, a inclusão de disciplinas na grade programativa de uma Escola de Belas Artes, por exemplo. Em fins de 1967, no reitorado de Roberto Santos, o ensaísta conversou nesse sentido com o diretor do Departamento Cultural da UFBA - assim se chamava nesta época, Professor Valentin Calderon de la Barca, que passou a mensagem ao reitor que, ao contrário de seu pai, o mitológico Edgard, achou a idéia viável e exeqüível. Resolveu instituir um curso de cinema livre, com a duração de um ano. Não se exigia diploma universitário, mas havia um teste e um módulo de não sei quantos alunos. Estudando no Colégio Estadual da Bahia, o saudoso Central, ainda por fazer 18 anos, consegui passar e o freqüentei, oportunidade na qual travei conhecimento com Walter da Silveira durante o ano letivo - já o conhecia do Clube de Cinema da Bahia de vista e de chapéu.

Eis que chega no cais soteropolitano um navio que vinha da Tchecoslováquia, trazendo, nele, Guido Araújo e sua esposa tcheca, Bohudmila. Guido tinha passado neste país mais de 10 anos e a conheceu porque ela, estudante de Letras, se especializara na língua portuguesa. O criador das jornadas baianas tinha ido à Tchecoslováquia como uma espécie de prêmio por seu trabalho como assistente de Nelson Pereira dos Santos em Rio 40 graus e Rio zona norte - na verdade, segundo os créditos dos filmes, fora continuísta. Nelson pediu a Guido que levasse Rio zona norte para o festival internacional de Karlovy Vary. E Guido foi ficando até se estabelecer em Praga, onde trabalhou em programas de rádio, entre outros afazeres na área cultural. Vale ressaltar que Barravento, de Glauber Rocha, que ganhou o principal prêmio do Festival de Karlovy Vary, foi Guido quem o inscreveu.

Na chegada de Guido, estavam no cais a esperá-lo, além de Walter da Silveira, com o qual tinha relações de amizade, Ney Negrão e sua esposa, na época, a advogada Ronilda Noblat, Walter Pinto Lima, entre outros. Quem sabe bem dessa história é Waltinho. Desempregado, Guido precisava arranjar um trabalho e Walter da Silveira o colocou no Departamento Cultural da UFBA. A partir da entrada de Guido neste setor da universidade é que tem início a estruturação do Curso Livre de Cinema, através da criação do Grupo Experimental de Cinema (GEC)

Com duração de um ano, o curso foi dado à noite, às 20 horas, sempre às terças e quintas, na Casa da França que, depois que saiu do guarda-chuva da UFBa, veio a morrer lentamente na Mouraria, e o espaço deu lugar a Biblioteca Central, que no reitorado de Luiz Fernando Macedo Costa, construído um prédio grande no campus de Ondina, para lá se transferiu. E a Faculdade de Comunicação passou a ocupar o antigo prédio da Casa da França.

Walter da Silveira ensinava, as terças, História e Estética do Cinema, e Guido Araújo, as quintas, Teoria e Prática. Fui colega de muitas pessoas que se tornaram, depois, cineastas, como André Luiz de Oliveira, que fez Meteorango Kid, A lenda de Ubirajara, Louco por cinema, José Umberto (O anjo negro), José Frazão (Akpalô, O último herói do gibi, O mistério do Colégio Brasil... - por falar nele, onde anda Frazão?), e pessoas que estudaram, depois, cinema, a exemplo de Geraldo Machado, Jairo Farias Goes, etc. Vou parar por aqui para não omitir nomes. E Ney Negrão, que também tomou o curso.

Uma noite inesquecível foi quando Walter da Silveira levou Glauber Rocha para fazer uma palestra. O cineasta estava filmando em Milagres O dragão da maldade contra o santo guerreiro, que ganharia, no ano seguinte, um prêmio importante em Cannes. Glauber fez uma radiografia brilhante da situação do cinema brasileiro, lamentou que o governo do Estado lhe negou até uma Kombi, não recebendo da administração Luiz Vianna Filho um centavo sequer, respondeu perguntas. Corria o mês de maio e Glauber estava com um casaco preto de couro.

Em 1969, por motivos de saúde, Walter não pôde mais dar aulas. Um câncer lhe destruía o corpo efêmero. Morreu aos 55 anos em novembro de 1970. Mas o Curso Livre de Cinema continuou por muitos anos comandando, apenas, por Guido Araújo. Por falar no Cidadão Walter, o Departamento de Audiovisual da Fundação há mais de dez anos que prometeu publicar uma coletânea completa dos escritos do autor de Fronteiras do Cinema. Designado para fazer o trabalho de seleção e organização, José Umberto Dias – que, nos anos 70 já organizara A História do Cinema vista da província, obra póstuma de Walter, se empenhou por vários anos na tarefa e entregou o material todo pronto para o prelo. Mas o livro foi engavetado e se encontra num processo kafquiniano submerso num labirinto burocrático difícil de decifrar e solucionar. O jornalista Cláudio Leal fez a denúncia ano passado no jornal Província da Bahia e a filha mais velha de Walter da Silveira, Kátia, luta desesperadamente para que a obra venha a ser editada. Todos os esforços, no entanto, parece em vão. Não se compreende que uma obra de tal envergadura, de tal importância, fique, assim, à mercê dos burocratas, que parecem não entender a fundamental contribuição de Walter para o ensaio cinematográfico. Walter da Silveira, é bom que se diga, não somente é o maior ensaísta que a Bahia já teve, mas um dos mais lúcidos pensadores sobre a natureza do cinema do Brasil. Prefiro, por exemplo, sem aqui tirar o valor, imenso, de Paulo Emílio Salles Gomes, os ensaios de Walter aos ensaios deste. Urge uma providência e mesmo uma intervenção. Vale lembrar que, se vivo fosse, o ensaísta estaria a completar, neste 2005, 90 anos, pois nasceu em 1915. Seria uma grande homenagem se, no ano em curso, o livro, afinal, fosse dado à luz.






(2.) Quando se podia transitar na urbis soteropolitana, antes que a violência tomasse conta da cidade, lá pelos anos 60, um exibidor de um cinema do bairro da Liberdade, o Cine São Jorge - que formava com o Brasil e o São Caetano as salas exibidoras do bairro, resolveu passar, à meia-noite dos sábados, 'filmes de putaria', segundo sua própria expressão. Eram filmes mal feitos, pessimamente fotografados, mal focados, quase que não se podia ver direito o que estava acontecendo no interior do enquadramento. Para compensar a qualidade deficiente dos celulóides em 35mm, o exibidor comprou um projetor 8mm - nada de Super 8, que não existia - em Marota, um comerciante antigo da Cidade Baixa que negociava com material de cinema. Instalando este projetor na sala, mandou buscar filmes suecos e dinamarqueses 'de putaria grossa', que tinham, apesar da bitola menor, o 8mm, uma qualidade fotográfica excelente.

As sessões ficavam abarrotadas, porque em matéria de 'putaria', os homens se contentavam com as histórias em quadrinhos de Carlos Zéfiro, vendidas clandestinamente, mas fáceis de encontrar na Praça Municipal. Fui a uma delas, e vim andando da Liberdade para casa em Nazaré perto das duas da manhã. Tudo era muito calmo. Dava prazer se viver em Salvador.

Mas a polícia, um belo dia, invadiu o São Jorge, mandou parar a sessão, prendeu o exibidor. Todos os jornais estamparam em manchetes. A Tarde fez um editorial moralista da lavra calmoniana. Mas Cruz Rios riu do episódio. Dois meses depois, Walter da Silveira fez um acordo com o exibidor Francisco Python para projetar 'filmes de arte' no Guarany da Praça Castro Alves - que com a morte de Glauber tomou o nome do cineasta.
Considerando que a cidade era muito pacata, a sessão da meia-noite do Clube de Cinema da Bahia, aos sábados, constituiria-se numa opção para o fim de semana.

Walter programou, para abrir com chave de ouro a programação, O túmulo do sol, um filme japonês muito premiado sobre um menino que gostava de contemplar o sol. Filme mágico e encantado e próprio para todas as idades. Mas, por causa do horário, meia-noite, menor não podia entrar. No dia marcado, desde as 23 horas filas se desdobravam pela Praça. Walter achou esquisito, pois o filme seria para um público mais restrito. Filas para comprar ingresso e outras filas para entrar. Um sufoco. A sala de espera abarrotada, e na hora que a corrente foi aberta, pessoas sendo empurradas, uma confusão dos diabos. Na sala, gente sentada no chão. Eis que começa o filme. Passados quinze minutos, as pessoas começaram a gritar, gerando, com isso, um tumulto. Resultado: a maioria das poltronas do Guarany foi arrebentada.

Tudo porque, estando ainda fresca na memória dos baianos a notícia da invasão policial do São Jorge, os soteropolitanos pensaram que, naquele horário, os filmes seriam de 'putaria grossa'. Python rasgou o contrato com Walter, tendo a aquiescência deste.



*André Setaro, professor da UFBA

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

A MISÉRIA CULTURAL BAIANA

Por André Setaro
Se a miséria está instalada na cultura baiana (nada a ver com política cultural deste ou daquele governo, pois a coisa é crônica), no plano nacional, e no tocante ao cinema em particular, ir ao cinema somente é permitido à classe média alta para cima. O povo e a classe média estão praticamente excluídos, a formar uma geração dos Sem Cinema. Triste realidade. E assustadora, porque quem não se habitua cedo a ir ao cinema não vai nunca mais.


Sim, uma ida ao cinema atualmente significa um gasto considerável, que fura o orçamento do classe média, que está pagando a conta das bolsas familiares. A verdade é que, depois do Plano Real, a economia se dolarizou, os preços subiram muito e os salários, congelados em freezer potente. Um casal para ir ao Multiplex gasta, de saída, 32 reais, considerando que o ingresso custa a 16. Se quiser se empipocar, como é de praxe, mais uma grana – e os complexos de cinema cobram muito mais nas guloseimas compradas dentro deles. Mas, uma ida a seco, e de ônibus, adicione-se aos 32 dos ingressos, os 8 das passagens (2 reais por cabeça). O resultado assinala que um filme custa 40 reais. Muito caro. E o povo, e o povo, como é que pode ir ao cinema? Já que não mais existem os chamados cinemas de rua nem os de bairros?
Se formos fazer uma comparação entre o número de salas exibidoras que Salvador tinha em 1958 e o que tem atualmente, a conclusão é uma só: os cinemas estão fechando suas portas. Com uma população de, mais ou menos, quinhentos mil habitantes, a província possuía em torno de quase trinta salas, considerando, no cômputo final, as de primeira linha, os poeiras da Baixa dos Sapateiros, e os cinemas de bairro. Para arredondar o raciocino, que se coloque trinta salas em 1958 para quinhentos mil habitantes, sendo que cada uma delas tinha, em média, mil poltronas, variando entre as salas maiores, de quase duas mil cadeiras, como o Guarany e o Jandaia, e as menores, que beiravam a mil lugares.


Para não haver crescimento das salas exibidores, e considerando, sempre, a densidade demográfica, nos dias que correm – e como correm!, com uma população de dois milhões e quinhentos mil habitantes – e, aqui, nivelando por baixo, Salvador deveria ter, no mínimo, cento e cinqüenta salas, pois a sua população, entre 1958 e 2005, aumentou cinco vezes. O cálculo é simples. Multiplicam-se as trinta salas do passado por 5 e se tem o número de cinemas que a cidade deveria ter e, repetindo-se, sem haver crescimento. Mas atualmente o que se tem é um máximo de trinta e cinco salas e cada uma com um máximo de 400 lugares, a maior parte se localizando nos complexos chamados Multiplex.

Então que se faça uma nova contagem, considerando que cada cinema, em 1958, tinha em média mil lugares e, hoje, trezentos. Trinta vezes mil, em 1958, é igual a trinta mil. Que se coloque, para ficar bem claro, em números inteiros: tinha-se, na província, nesta época, 30.000 lugares e, se o número for multiplicado por cinco, porque a população cresceu cinco vezes, tem-se o número redondo de 150.000. Este, o número que, para não se constatar crescimento, mas, apenas, manutenção, deveria a cidade possuir em número de lugares. Mas o que se tem atualmente? Com a média de 400 lugares e 35 salas, fazendo-se a multiplicação, o resultado é de 14.000 lugares. Que diferença brutal!
Se antigamente o povo ia muito ao cinema, hoje, como disse Gustavo Dahl, há alguns anos, no Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, não tem acesso a ele. O cinema, que era um meio de comunicação de massa, atualmente é um veículo cujo acesso somente é possível à elite.


Antes, existiam os cinemas de primeira linha, lançadores, que ficavam concentrados no centro histórico, os poeiras da Baixa dos Sapateiros e os de bairro. Luiz Carlos Barreto, que conhece muito bem a mercadologia cinematográfica, afirmou, em recente entrevista no Canal Brasil, que o ingresso custava em torno de um dólar e, nos cinemas de segunda, cinqüenta centavos. É como se hoje o ingresso para entrar numa das salas do Multiplex custasse dois reais e cinqüenta centavos, a inteira, a inteira! Mas quanto custa realmente? Em torno de quatorze reais. Como uma pessoa que ganha a miséria do salário mínimo pode freqüentar as salas de exibição? Ir com a família ao cinema? Nem pensar.


O Plano Real dolarizou a economia de uma forma perversa. O povo está excluído do cinema, assim como a chamada classe média baixa. A conclusão é estarrecedora e reveladora: apenas dez por cento da população baiana pode ir ao cinema, sendo que dois milhões e tanto de pessoas estão completamente fora da rota cinematográfica. Constatou-se, em pesquisa recente, que a maioria dos baianos nunca foi ao cinema. Um grupo organizou uma sessão cinematográfica num bairro periférico e o que se viu foi espantoso. As pessoas ficaram maravilhadas pelas imagens em movimento, pois estavam a contempla-las pela primeira vez. E isto aconteceu na região metropolitana de Salvador!Na década de 50, o Brasil tinha perto de dez mil salas exibidoras. Em 1975, já se contavam apenas cinco mil. No ano passado, chegou a mil e novecentos.


Os cinemas interioranos fecharam suas portas. Assim como aqueles de rua, como os antigos e inesquecíveis da Baixa dos Sapateiros e os de bairro. O que se constata é que os cinemas estão sendo construídos para o usufruto de uma elite que pode pagar os quatorze reais de ingresso, ainda a se refestelar com as guloseimas caríssimas que lhe são oferecidas no fast food. O público se infantilizou e se idiotizou. Ir ao cinema, antes um ritual, uma solenidade, uma função, atualmente é comparável a uma ida ao fast food.