quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

CINEMA E HISTÓRIA: O ENCONTRO DE DOIS MUNDOS

Por Beto Magno

A história no cinema, ou seja, os filmes enquanto fonte histórica e meio de representação da história teve em Marc Ferro sua primeira e principal referência mundial. Em sua obra “Cinema e História”, o autor formulou a definição de duas vias de leitura do cinema acessíveis ao historiador: a leitura histórica do filme (que corresponde a uma leitura do momento presente em que este foi produzido ) e uma leitura cinematográfica da história que seria a utilização dos filmes para uma leitura da história.(FERRO, 1992).Ao analisar a recusa de historiadores contemporâneos em recorrer aos filmes como documento, Ferro diz tratar-se de uma recusa inconsciente, que procede de causas mais complexas. Seria necessário, segundo o historiador francês, fazer o exame de quais “monumentos do passado” o historiador transformou em documentos para, em seguida,buscar perceber que documentos, hoje, a história transforma em monumentos.A partir da década de 1970, sob influência da Escola dos Annales, na França, que desencadeou um processo de reformulação do conceito e métodos da história, o filme passa a representar um testemunho de seu tempo e ganha o status de documento histórico.
Com o filme ganhando status de documento histórico, algumas obras começam a surgir buscando debater o modo de operar com esta nova fonte. (LE GOFF & NORA, 1979). Siegfried Kracauer com a obra “Teoria do Filme”, publicada em 1960, é um dos primeiros a habilitar-se a colaborar.Baseando sua construção teórica numa visão realista do cinema, já em seu prefácio, o autor afirma que sua teoria seria uma estética material baseada na prioridade do conteúdo.Para este autor, toda arte é uma batalha entre a forma e o conteúdo, sendo que, no cinema, o conteúdo teria vantagem sobre a forma. Esta certeza impulsionou a Kracauer contemplar, com um capítulo em sua obra, a análise dos conteúdos cinemáticos de vários filmes. A obra do teórico alemão notabiliza-se por levantar uma questão crucial na análise documental de um filme: o realismo das películas.
Para Kracauer, a forma cinematográfica ideal seria aquela que conseguisse o equilíbrio entre o documentário, que tenta seguir o impetuoso fluxo da natureza, e o filme de enredo, que se esforça para dar à natureza uma forma humana. A síntese dessas duas antíteses foi estabelecida por Kracauer com o que ele chamou de “enredo encontrado”. Exemplos de “enredos encontrados” são os filmes do neo-realismo italiano cujas histórias nascem do local e da cultura filmados; neles, nunca um indivíduo inicia uma trama, pois a trama deve vir da própria realidade. Mesmo passível de críticas, a obra de Kracauer fez emergir de forma vigorosa a relação cinema e história. (BAZIN, 1991) Caminhando na mesma linha de interpretações, encontra-se o americano Robert Rosenstone, cuja grande preocupação é interrogar-se sobre as possibilidades do discurso histórico escrito, transformar-se em um discurso visual. Faz uma crítica indireta a Kracauer,quando afirma que não são o excesso de ficção ou a falta de rigor as duas maiores transgressões do cinema à concepção tradicional de história.
Para o historiador o grande problema situa-se na tendência do cinema a comprimir o passado e convertê-lo em algo fechado, mediante uma explicação linear, uma interpretação exclusiva de uma única concatenação de acontecimentos. (ROSENSTONE, 1998).O próprio Rosenstone nos apresenta a posição de dois teóricos, cujas leituras divergem, no que concerne a este possível reducionismo do documento fílmico. O historiador R. J. Raack defende a tese de que as imagens são mais apropriadas para explicara história do que as palavras. Para ele, a história escrita convencional é tão linear e limitada que é incapaz de mostrar o complexo e multidimensional mundo dos seres humanos, capacidade só atribuída às películas. Posição oposta à de Raack defende o filósofo Jan Jarvier, já que para ele as imagens só podem “transmitir muito pouca informação” e padecem de tal “debilidade discursiva” que é impossível transpor algum tema histórico na tela.Diante das controvérsias, Rosenstone centra seus argumentos conclusivos sobre a necessidade de aprofundar-se no entendimento da linguagem e nos códigos específicos do cinema no intuito de desenvolver uma leitura mais adequada das capacidades do meio audiovisual, para informar, justapor imagens e palavras e criar estruturas analíticas visuais.À luz destas necessidades de entendimento de códigos e estruturas analíticas visuais, Jean-Claude Bernardet aproxima o cinema da história ao contemplar, com um capítulo de sua obra “Piranhas no Mar de Rosas” a análise de alguns filmes de temática histórica.O autor, em texto introdutório, posiciona-se contrário a uma parte da crítica especializada que defende, segundo ele, uma estética “naturalista” dos filmes históricos,exigindo deles uma reconstituição de fatos e figurinos que se aproximem o máximo da“verdade histórica”.No momento em que estes críticos exigem verossimilhança excessiva da reconstituição histórica nos filmes, estão tomando uma atitude puramente ideológica,pois querem ter para si o domínio da história, pois, ao dominar a história dominam o presente, “já que a história é sempre uma interpretação do presente”.(BERNARDET,1982).
O argumento de Bernardet perde consistência, entretanto, no momento em que, ao defender uma liberdade estética e interpretativa dos fatos históricos no cinema este não deixa claro o conceito de história que se passa nas telas. Ao acusar os críticos de imporem uma visão única de história, ele próprio não caracteriza que visão histórica defende. Faltam-lhe neste momento a responsabilidade e o embasamento teórico de um historiador. Ainda referindo-se ao cinema como documento e à constituição de uma época no conteúdo deste documento, Jean-Louis Leutrat,(1995) admite que a discrepância temporal entre a época representada e a que produz esta representação não proíbe que relações de contrastes ou analogias se estabeleçam entre elas,Para o autor, a própria reconstituição, os figurinos, por exemplo, se opera com freqüência a partir de representações da época tomadas como imagem fiel de uma realidade . Mesmo dentro de uma reconstituição, Leutrat reconhece a presença de invenção.
O teórico francês mostra-se categórico quanto ao seu pessimismo com o cinema como documento ao afirmar que a imagem no cinema não exibe senão desajustes. Ao concluir, sustenta a tese de que o filme se apresenta raramente como um discurso de sabedoria, mesmo se ele pode produzir efeitos de sabedoria. E, quando se torna auxiliar de uma ciência, pede que seja acompanhado de um comentário. (JOLY, 1999).
O filme “Barravento” de Glauber Rocha é um exemplo típico de como se pode representar leituras divergentes de um mesmo fato. Ismail Xavier, em obra escrita em 1983, inaugura uma nova tese de análise sobre Barravento. De modo geral, antes de Xavier, o primeiro longa metragem de Glauber Rocha representava um claro e inequívoco discurso contra a religiosidade africana. Xavier propõe uma revisão desta tese, optando pela renúncia do enredo como eixo do discurso fílmico e centrando sua argumentação numa leitura específica sobre a imagem e o som da película. (XAVIER, 1993).O livro de Xavier analisa quatro filmes: dois de Glauber e dois que ele considere representativos do Cinema Não Novo brasileiro. O capítulo, que se refere a “Barravento”, é construído para provar que houve por parte de Glauber uma ambigüidade de ponto de vista que se alternou entre uma aceitação poética da cultura popular representada pelo candomblé uma denuncia da religiosidade como fator de alienação de um povo. Ao dar ênfase na análise da imagem e do som, Xavier abre possibilidades especulativas e dúbias no discurso do diretor baiano. Renato da Silveira, em texto escrito em 1998, desconstrói a tese de Xavier, afirmando que não há rigorosamente nada em “Barravento”, que não possa encontrar “lógica”, “ científica”.
Ainda, segundo ele, um certo deslumbramento com o exótico impede que isso fique claro. Ao contrário de Xavier, Silveira ocupa-se do texto escrito do enredo como eixo do discurso fílmico. Apesar de não descartar a análise das outras linguagens que compõem um filme como a imagem e o som, percebe que, no caso especifico de “Barravento”, o texto é o elemento essencial na caracterização de um discurso único e logicamente construído pelo diretor.Para construir sua tese, e conseqüentemente mostrar o equívoco cometido pór Xavier, substancia seu trabalho com uma caracterização do contexto ideológico do início da década de 60 e a influência deste contexto na formação intelectual do jovem Glauber Rocha.Faz uma analogia intelectual entre teoria e prática na obra de Glauber, fazendo emergir uma relação direta e inequívoca dos pressupostos teóricos do cineasta e o resultado final do discurso fílmico de Barravento. O texto de Renato da Silveira conclui por uma afirmação do filme como um manifesto político contrário à alienação popular causada pelo candomblé.
Ao fazer uma análise da presença da religião afro brasileira nos filmes brasileiros, Robert Stam (1997) aproxima-se da discussão em torno de “Barravento”. A posição do autor toma uma direção conciliatória entre a de Xavier e a de Silveira.Sua análise leva em conta tanto a abordagem materialista quanto a poética. Mostrando-se minucioso pesquisador, dá a devida importância aos assuntos de bastidores que envolveram a produção de Barravento. Embasaram seu texto, a formação religiosa dos principais envolvidos na produção, o grau de envolvimento destes mesmos personagens com o candomblé, a formação intelectual de Glauber Rocha, e o conflito histórico da produção representado pela exclusão de Luis Paulino dos Santos à frente da direção do filme.
Todos esses fatos levaram Stam a concluir que o objetivo de Glauber Rocha, com “Barravento”, foi mostrar que sob o exotismo e a beleza decorativa do misticismo afro brasileiro existia a fome, o analfabetismo e a miséria. Entretanto, em certo momento, o historiador americano acaba sucumbindo às suas limitações conclusivas do tema, ao afirmar que até certo ponto o filme é uma equação ir resolvível. Antonio Costa escreveu uma espécie de manual cinematográfico cujo principal objetivo foi facilitar a compreensão do complexo mundo que envolve o cinema. Sua obra busca, ao mesmo tempo, teorizar e historiar os fatos ligados ao cinema desde sua criação. (COSTA, 1987).
No primeiro capítulo cujo título é “O que é cinema?” trabalha com as diversas formas de abordar o cinema, contemplando neste conteúdo a história do cinema.A principal dificuldade do historiador do cinema é a de unificar, em uma única perspectiva,um fenômeno tão complexo com vários objetos de pesquisa que, embora separados devam estar coesos. Costa atribui a uma estruturação de tipo abrangente e comparativo o método correto para se atingir o êxito das histórias gerais do cinema. Jean-Louis Leutrat, em obra já citada, faz uma aproximação entre história e antropologia. Partindo da idéia de que o espaço é a matéria da antropologia e o tempo a matéria – prima da história, é possível entrecruzar as duas ciências a fim de fazer do cinema um domínio em que ambas ciências enriqueçam o conhecimento do objeto.Um projeto de história do cinema poderia ser o de reconhecer a maneira pela qual os atores sociais revestem de sentido as suas práticas e os seus discursos.
Em contribuição a uma história do cinema de forma abrangente, Walter da Silveira vai escrever “A História do Cinema Vista da Província”. Escrito sob o ponto de vista de quem viveu os melhores momentos do cinema baiano, o texto está, baseado em farta documentação, traça um panorama do cinema na Bahia e no Brasil na primeira metade do século XX. (SILVEIRA, 1978).
Organizada em forma de tópicos curtos, a obra de Walter, apesar de ser fiel a uma coerência cronológica, afasta-se da linearidade, demonstrando a dificuldade do historiador do cinema em contracenar sua história no tempo e no espaço. A opção por um texto basicamente informativo é fruto da dificuldade de unificação, levantada por Costa, dos vários objetos que compõem a história do cinema. Mesmo distanciando-se de certos rigores historiográficos, o livro de Walter da Silveira é essencial para o conhecimento do cinema baiano e brasileiro. Raimundo Nonato Fonseca (2000), em dissertação de mestrado defendida recentemente, aborda o cinema como eixo temático na construção de uma historia social da Bahia nas três primeiras décadas do século XX.
O trabalho de Nonato insere o lazer,representado através do cinema, como campo de estudo histórico do cotidiano baiano.Recorrendo a jornais como principal fonte de pesquisa, a tese em questão retrata, os costumes, hábitos e valores do baiano. Ao retratar o cotidiano do baiano, Fonseca objetiva perceber o sistema de trocas e incorporação cultural, ocorrido na cidade, entre o cinema e o povo da Bahia.A pesquisa de Fonseca ganha importância dentro da historiografia específica por servir de exemplo de abordagem por parte do objeto cinema numa perspectiva de cunho cultural.
Os textos abordados demonstram o quanto a relação cinema e história mostra-se embrionária em termos de conceitualização metodológica. As posições persistem contraditórias, mas convergem, de modo geral, quanto à utilização do cinema, seja como instrumento de um discurso ou como documento histórico. O uso do cinema como documento, entretanto, precede, por parte do historiador, um domínio das representações que caracterizam a linguagem cinematográfica. Cabe, portanto, ao historiador contemporâneo investir em sua capacitação interpretativa desta linguagem e apoderar-se do cinema de forma proveitosa como mais uma ferramenta no processo de produção historiográfica.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:BAZIN, André. O Cinema: Ensaios. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1991.BERNARDERT, J. C. Piranha no Mar de Rosas. São Paulo: Nobel, 1982.COSTA, Antonio. Compreender o cinema. Rio de Janeiro: Globo, 1987.FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 1992.JARVIE, I. C. Ver através dos filmes: Filosofia das Ciências Sociais. n. 8., 1978, p.378.JOLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. Campinas: Papirus, 1999.KRACAUER, Siegfried. Theory of film: The Redemption of Physical Reality. Nova York: Oxford University Press, 1960.LE GOFF, Jacques & NORA, Pierre. (Orgs). “História: Novos Problemas”. In: A NovaHistória. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.LEUTRAT, Jean-Louis. Uma Relação de diversos andares: Cinema e História. Revista Imagens, n. 5, ago/dez 1995, p. 28-33.RAACK, R, J. Historiography as cinematography: a prolegomenon to filme work for historians. Journal of Contemporary History, n. 18, 1993, p. 416-18.STAM, Robert. Tropical multiculturalism: A Comparative HistorY of Race in Brazilian Cinema and cultura. London: Duke University Press, 1997.SILVEIRA, Renato. O Jovem Glauber e a Ira do Orixá. Seção Textos, n. 39, set/nov de1998, p. 88-115.XAVIER, Ismail. Sertão Mar, Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo:Brasiliense/ Embrafilme/MEC, 1993.

" O TEMPO E O LUGAR" RESGATA HISTÓRIA DE LUTA NO CAMPO NO BRASIL.

BETO MAGNO E JORGE MELLO (JM)

Por EDILSON SAÇASHJMA.

Genivaldo Vieira da Silva é o protagonista do documentário "O Tempo e o Lugar". Esse nome poderia passar despercebido em meio à população que sobrevive no semi-árido nordestino. Porém, a sensibilidade do cineasta Eduardo Escorel conseguiu captar naquele homem uma história que levanta questões sobre a realidade agrária do país.O primeiro contato entre Genivaldo e Escorel aconteceu em 1996, quando o cineasta realizou com ele uma peça publicitária chamada "Gente que Faz", parte de uma série institucional de um banco apresentada nos intervalos do Jornal Nacional. O anúncio mostrava Genivaldo como um agricultor familiar, mas o cineasta notou que aquele morador de Inhapi, no interior de Alagoas, possuía outras histórias. Estava certo.
Genivaldo também era um militante da causa agrária e líder do Movimento Sem-Terra. Participou de invasões, foi preso e, anos depois, tentou a carreira política
o registro do depoimento de Genivaldo relatando esta parte de sua biografia aconteceu em 2005. Em 2007, Escorel voltou a Alagoas e captou novos relatos do protagonista, desta vez com os comentários dele em relação aos depoimentos de 2005. Com isso, o ex-líder do MST passa em revista a sua trajetória e avalia sua própria história."O Tempo e o Lugar" é um filme sobre a memória e também uma revisão crítica da história recente do Brasil.
Carismático e com boa retórica, Genivaldo apresenta críticas ao MST, demonstra frustração com o PT e com o presidente Lula.Talvez se possa esperar reações acaloradas de uma parte da platéia, como ocorreu durante o festival É Tudo Verdade deste ano. O tema incendiário, porém, é tratado com sutileza e leveza por Escorel. O diretor, colaborador de cineastas como Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha e Eduardo Coutinho, consegue fugir da crítica fácil e inflamada sem perder de vista a refinada análise do contexto histórico brasileiro em que se enquadra o personagem.Cineasta, montador, roteirista e ensaísta, Escorel transforma o quase monólogo de Genivaldo em diálogo com a realidade brasileira. Mas o diálogo é possível também em outros níveis. A estrutura e o tema de "O Tempo e o Lugar" podem ser vistos à luz de "Cabra Marcado para Morrer", de Eduardo Coutinho e do qual Escorel foi montador.
Os dois filmes tratam da questão agrária do país, retratam um período histórico preciso e falam de memória.
Porém, como lembrou Escorel em entrevista ao UOL, João Teixeira, protagonista de "Cabra", é um herói trágico. Genivaldo, um herói realizado. Mas ele teria atingido seus objetivos políticos e sociais? Está aí mais um ponto para se refletir.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

COM MONIZ DESAPARECEM A GRAÇA, A ESPIRITUALIDADE E A IRONIA

Texto de André Setaro

Pelo que estou a ler por aí, pouca gente conheceu ou ouviu falar de Antonio Moniz Vianna, exceção se faça às pessoas mais velhas, o que significa uma lacuna na formação cinematográfica. Até meu amigo Romero, que julgo entender da arte do filme, diz, em comentário, que não leu São Moniz Vianna. O fato é que, ironias à parte, apesar de ter minha formação cinematográfica muito influenciada pelo crítico desaparecido, nunca comunguei de todas as suas opiniões, principalmente às referentes ao Cinema Novo, do qual fui um entusiasta na medida do possível, a apreciar as obras de Glauber, Leon, Saraceni, Guerra, entre outros. Há os grandes filmes cinemanovistas e existem, como em tudo na vida, as obras pachorrentas, que se aproveitam da onda para aporrinhar os espectadores. Moniz Vianna gostava de provocar e produzir frases de efeito. E, com isso, aborrecia muita gente. A revista Filme/Cultura, acho que em seu número 35, dedica-o à crítica de cinema e faz uma homenagem ao mestre que se foi. Há depoimentos de Carlos Diegues, Paulo Perdigão, Arnaldo Jabor, entre outros, que confessam a influência decisiva de São Moniz Vianna.A adesão total ao cinema americano de Vianna era inegável, mas também admirava muito o cinema italiano (prinpalmente Federico Fellini) e era fã confesso de René Clair. Naquela época, a crítica mais enragé se dividia, em torno do cinema francês, entre René Clair e Jean Renoir. Vianna ficava com Clair em oposição ao realizador de La règle de jeu. Na segunda metade dos anos 60, e bato este post de memória e no afogadilho da pressa, havia dois conselhos de cinema: um, no Correio da Manhã, e outro no Jornal do Brasil. Cada conselho reunia em média dez críticos que, uma vez por semana, além do quadro das cotações estreladas, estabelecia comentários em torno de um filme importante da semana (ao contrário dos dias de hoje, havia sempre um filme importante sendo exibido na semana). Dos críticos do Correio, que possa me lembrar agora, todos eram liderados por Moniz, ainda que, mais tarde, tenha havido certa dissidência, como sói acontecer em tudo que se refere à natureza humana. Ironildes Rodrigues, Paulo Perdigão, Van Jaffa, Valério Andrade (este, fã de carteirinha de São Moniz Vianna, jornalista, deixou a cidade onde nasceu, Natal, para ir ao Rio conhecer o santo homem), Ronald. F. Monteiro (acho que tenho um recorte com os nomes de todos os críticos, mas a preguiça domina o escrevinhador), etc. Não me lembro agora se o conselho do Correio da Manhã era simultâneo ao do Jornal do Brasil. Creio que o deste surgiu com o fim do outro. No JB, o jornal mais importante da época - seu Caderno B era literalmente devorado,. o conselho era composto por Alberto Shatovsky (que depois se tornaria empresário e instalaria no mercado exibidor os saudosos Cinema 1 [na Prado Junior] e o Cinema 2 [na rua Raul Pompéia], ambos em Copacabana), Ely Azeredo (o responsável pela denominação Cinema Novo, estilista admirável, mas olhado de esguelha e de soslaio pelos mais avançados), Sérgio Augusto, José Carlos Avellar, Valério Andrade, Miriam (como é mesmo o outro nome dela?), Alex Viany, Maurício Gomes Leite (realizador de uma das obras-pirmas do cinema brasileiro: A vida provisória), etc.A questão ideológica era muito forte naquela época. O cinema tinha um status político que perdeu totalmente. Era o tempo da famosa Geração Paissandú. Jean-Luc Godard dava as cartas para a constelação estelar do conselho do JB no qual Maurício Gomes Leite talvez tenha sido o godardiano mais eloquente. Moniz não participava dele, mas seus discípulos, ou suas crias, como se dizia, penduravam no conselho muitas bolas pretas, a exemplo do fiel seguidor Valério Andrade. Glauber, via Paulo Perdigão, mostrou, em sessão especial, Deus e o diabo na terra do sol para Moniz Vianna, que o viu e se entusiasmou. Também elogiou O dragão da maldade contra o santo guerreiro.Bem, o problema de hoje reside no politicamente correto e na falta de senso de humor. O que mais faz falta no magister Vianna está justamente na sua imensa capacidade de provocar e de colocar, em seus escritos, a pena da ironia. Com um estilo somente comparável ao dos grandes escritores.

ANTES DE SER O TAL...

Texto de André Setaro

Considerando que existem três espécies de realizadores cinematográficos, o autor, o estilista, e o artesão, Clint Eastwood, o diretor do recente (e notável!) A troca (Changeling), seria o caso de um artesão que aos poucos foi se moldando como um autor de filmes. E um dos mais expressivos e significativos do cinema contemporâneo. Para se detectar um autor, é necessário que o realizador tenha já alguns filmes, a fim de que, na análise comparativa de suas obras, possa se estabelecer as constantes temáticas e estilísticas. Para que se configure como um autor, o cineasta precisa ter uma visão de mundo e uma visão de cinema, isto é, um universo ficcional próprio e uma maneira peculiar de explicitar o seu repertório temático através das imagens em movimento.
Autores marcaram a história da arte do filme e, também, provocaram polêmica, principalmente quando da emergência, na França, via Cahiers du Cinema, da Política dos Autores (Politique des Auteurs). São autores de filmes, para ficar apenas em poucos exemplos, Ingmar Bergman, Fellini, Chaplin, Welles, Hitchcock, entre tantos outros, pois realizadores que possuem, nítidas, constantes temáticas e constantes estilísticas.
Já o estilista não possui universo ficcional próprio, mas tem uma maneira muito sua de articular os elementos da linguagem cinematográfica, um estilo particular, uma marca registrada. Não seria Steven Spielberg, por exemplo, um estilista? Ainda que em sua filmografia possam ser notadas preocupações relativas à necessidade do conforto familiar, do retorno à infância, do imaginário construído em torno da célula mater, etc. Mas o que tem a ver Parque dos dinossauros com A lista de Schindler? O que tem a ver Os caçadores da arca perdida com Amistad? Não se colocaria Spielberg no panteão dos autores nem dos artesãos.

Estes se caracterizam pela ausência de constantes temáticas e pela inexistência de um estilo, de uma marca. Realizadores sem estilo, os artesãos, no entanto, sabem contar uma história, desenvolver uma narrativa em função da fábula e estão confinados à falta de ambição e propósitos outros que não estejam conectados com o desenvolvimento do roteiro. É verdade que um grande autor pode ser de mais valia para a história da arte do filme do que um grande artesão. Mas o fato de o realizador ser um autor não o credencia a ser melhor do que o artesão. Tudo na vida, como no cinema, é relativo. Muitas vezes, melhor um afiado artesão do que um autor chato, pachorrento, pretensioso, do qual o cinema está cheio pelas bordas.

Mas o objeto deste artigo é Clint Eastwood, caso um pouco raro de artesão que, aos poucos, foi se construindo como autor, e autor, diga-se de passagem, do primeiro time. Clint nasceu numa ladeira da cidade de San Francisco em 31 de maio de 1930. Vai fazer, portanto, 79 anos, já beirando os 80 e ainda em plena forma, ativo, lépido e fagueiro, prestes a iniciar um novo longa metragem. Família pobre, de parcos recursos, a obrigar o menino ao exercício da sobrevivência como entregador de pizzas, faxineiro de armazém, entre outros trabalhos do gênero. Rapaz, perambulava pelas ruas de San Francisco (com suas ladeiras celebrizadas em Bullit, de Peter Yates, ou, mesmo, no delirante Um corpo que cai/Vertigo, do mestre Hitch), a namorar as garotas nos anos dourados dos 50, mas com o pensamento nas telas do cinema.

Em 1954, após muito batalhar, consegue participar de um sem número de seriados da Universal, fazendo pontas sem sucesso. Foi preciso esperar uma década para, em 1964, num intervalo do seriado Rawhide receber um convite para trabalhar num filme na Itália. Era Por um punhado de dólares, de Sergio Leone. Com este, participou de mais alguns filmes: Por uns dólares a mais, Três homens em conflito. De volta aos Estados Unidos, teve a sorte de encontrar Don Siegel, cineasta de grande dinamismo, de timing envolvente, que, pode se dizer, ensinou a Clint muitos dos segredos da arte de contar uma história com ritmo, eficiência, economia narrativa. Clint abriu uma produtora, a Malpaso, em 1968, e bancou alguns filmes de Siegel e, enquanto atuava, aprendia, perguntando, olhando, curioso. Perseguidor implacável (Dirty Harry, 1971), de Siegel, pode ser considerado – ao lado de Meu ódio será tua herança/The wild bunch, de Sam Peckinpah, o detonador da violência no cinema contemporâneo. Filme de ação irretocável, que marcou a década de 70, Dirty Harry estabeleceu a figura do policial lacônico interpretado por Clint, Harry Callaghan, que seria continuado em uma série de outros filmes (sem a marca de Siegel, entretanto). O “homem sem nome” dos filmes de Leone encontrara um novo posto na pele de Callaghan. Dirty Harry tem um precursor, que é Meu nome é Coogan (Coogan’s buff, 1968), do mesmo Siegel, com Clint como um policial interiorano que vai a Nova York buscar um criminoso que se evadira. A estruturação psicológica de Coogan é, mutatis mutandis, a mesma de Callaghan.

Ter uma empresa produtora ajudou muito a Clint na sua escalada como diretor. O seu princípio, no entanto, a julgar pelos seus filmes anunciadores da trajetória como cineasta, não oferece sinais do realizador que viria a ser. Em 1971, consegue financiamento para rodar Perversa paixão (Play misty for me), thriller sobre um radialista que se vê perseguido por ouvinte apaixonada, um exercício de suspense sem que se enxergue, nele, nada de extraordinário, mas a rotina comum aos filmes do gênero. Já a segunda tentativa, a de fazer um western fantasmagórico em O estranho sem nome (High plains drifter, 1972), com ele próprio e Verna Bloom, tem um cuidado visual que lembra Leone, e uma dinâmica no estabelecimento da ação que remete a Siegel, além do tema que beira, na tradição do gênero, o sobrenatural. O terceiro empreendimento, Interlúdio de amor (Breezy, 1973), melodrama sobre um homem de meia-idade (William Holden) que se apaixona por jovem (Kay Lenz) faz parecer que Clint, além de híbrido, é prolixo, considerando a salada de gêneros nos filmes dirigidos: um thriller fraquinho, um western com ponta inteligente, e um melodrama com clima seco.

Seria preciso esperar alguns anos para se ver em Clint um cineasta, pois Escalado para morrer (The eiger sanction), ação, cinema em movimento, de 1975, ainda não apresenta nada para surpreender. Josey Wales, o fora-da-lei (The outlaw Josey Wales, 1976), outro western, apesar de passar batido por uma crítica em busca das celebridades já carimbadas, e incapaz, como acontece sempre, salvo as exceções de praxe, de descobrir talentos, é filme interessante e muito acima da média, capaz de fazer ver o nascimento, em The outlaw Josey Wales, de um verdadeiro cineasta (e quem não acreditar pode tirar a dúvida no DVD). Clint trabalha ao lado de sua então esposa Sondra Locke (que depois viria, também, a dirigir, mas filmes insignificantes, à sombra do marido), que também aparece no filme seguinte, Rota suicida (The gauntlet, 1977), thriller de grande força, que, além de proporcionar excelente entretenimento, dá a seu diretor a oportunidade de conjugar ação e ironia, ironia e ação.

Os que se seguem são fitas menores, obrigatórias, porém, na missão da sobrevivência: Bronco Billy (1980), Firefox, a raposa de fogo (Firefox, 1982), Impacto fulminante (Sudden impact, 1983), uma aventura de Callaghan dirigida por ele mesmo, que Clint filma para fazer caixa para um projeto mais ambicioso e com menos possibilidade de ser apoiado por um grande estúdio.Para os que não enxergaram, e não conseguiram ver, que a semente do Clint cineasta estava em Josey Waley, seu filme de partida foi considerado em outro western, sombrio e magnífico, autoral, O cavaleiro solitário (Pale rider), em 1985. Neste, já se mostra que existe uma narrativa que transcende o mero entrecho fabular, fazendo despontar um pensamento que se faz imagem em movimento. Com o gênero em franca decadência, para não dizer desaparecido, a bilheteria lhe foi madrasta, precisando corrigir as burras de sua produtora com produto para consumo rápido: O destemido senhor de guerra (Heartbreak ridge, 1986).
É a partir de Bird que começa a ascenção de Clint Eastwood como diretor aclamado e respeitado. Mas, como se vê, antes realizou muita coisa boa.