Conheci Anselmo Duarte, que morreu no último fim de semana aos 89 anos, na véspera de uma das principais homenagens prestadas a ele no fim da vida, com a concessão do Prêmio Oscarito pela carreira no Festival de Gramado de 1992. Vivia-se o ocaso da era Collor, que seria afastado no final daquele ano, e o cinema brasileiro estava em frangalhos. Celebrar o único cineasta nacional vencedor da Palma de Ouro em Cannes, com “O Pagador de Promessas” em 1962, era um gesto de afirmação e resistência. Ninguém melhor do que Anselmo -reconhece-se hoje, após sua longa despedida. Naquele momento, não era tão consensual assim.
Durante tempo demais, Anselmo foi esnobado pelo colegas e menosprezado pela crítica. Era considerado um galã antes que um ator; um ator antes que um diretor; um diretor antes que um cineasta; um cineasta antes que um autor.
Anselmo foi carismático demais, independente demais, ambicioso demais. Trocou a Atlântida (Carnaval no Fogo) pela Vera Cruz (Sinhá Moça), sendo a estrela masculina maior das duas principais experiências de cinema industrial de estúdio por aqui. Passou para trás das câmeras em “Absolutamente Certo!” (1957), com uma elegante comédia de costumes em torno do impacto da TV – “um bom filme popular”, anátema para tempos crescentemente engajados.
Em plena aurora do Cinema Novo, foi à Meca do cinema de autor e superou seus pares, arrebatando a primeira e única vitória brasileira no maior festival de cinema do mundo. E o fez adaptando uma peça de um colega de viagem dos cinemanovistas (Dias Gomes) em parceria com um produtor paulista de comédias despretenciosas (Oswaldo Massaini).
Anselmo teve de conviver até a morte com a “boutade” de que Cannes tinha atribuído o prêmio certo ao país certo na hora certa mas ao filme errado. O tratamento clássico de “O Pagador de Promessas”, numa era de rupturas modernistas, jamais lhe foi perdoado.
Como escrevi em 1992, a Palma de Ouro foi a um só tempo sua maior vitória e a mais invencível maldição. Tudo parece ter se passado como se Anselmo, antes que um vitorioso, fosse um traidor: um galã que se faz diretor, um outsider que rouba a cena de um grupo mais bem articulado, um contador de histórias na época de sua desconstrução.
Seu filme seguinte marcou o grande refluxo na carreira de Anselmo. Adaptado de uma poderosa peça de Jorge Andrade sobre misticismo religioso, “Vereda da Salvação” (1964) era compreensivelmente considerada pelo próprio diretor sua obra-prima. Sua “sombria balada da selva”, na definição de um crítico alemão, foi derrotada por um voto por “Alphaville” de Godard no Festival de Berlim. Recebido sem euforia pela crítica brasileira, soçobrou também nas bilheterias. Nunca mais Anselmo se recuperou.
A raiva represada serviu-lhe para realizar talvez seu maior trabalho como ator como o tenente torturador de “O Caso dos Irmãos Naves” (1967) de Luiz Sérgio Person. Atrás das câmeras, porém, jamais voltou a brilhar. Entre 1969 e 1979 realizou ainda cinco longas (de “Quelé do Pajeu”, com o jovem Tarcisio Meira, a “Os Trombadinhas”, com o aposentado Pelé) e três episódios de comédias eróticas, sempre competentes -mas a chama se fora.
Contando 72 anos quando o entrevistei naquele Festival de Gramado, Anselmo Duarte me surprendeu pelo carisma, pela memória e pelo rancor. Lembrou-me, curiosamente, o líder comunista Luis Carlos Prestes, a quem eu ouvira alguns anos antes. Marginalizados, pareciam ambos conhecer seus lugares da História muito melhor dos que todos nós seus contemporâneos. O rancor era menor em Prestes; a empatia, maior em Anselmo. A memória para detalhes dos dois era simplesmente prodigiosa.
Anselmo jamais se considerou convidado a sentar na mesa principal do cinema brasileiro. Foi um “maverick”, um “self-made man”, com um tipo de trajetória mais comum e valorizada nos EUA do que por aqui. (Seus filmes, porém, mais que americanos, parecem-me sob a influência italiana. Frank Capra e o neorrealismo foram suas fontes, reconhecia Anselmo. E Watson Macedo, seu professor).
A dimensão de seus feitos e o peso do ressentimento são evidentes nas duas autobiografias orais escritas por Oséas Singh Jr. (Massao Ohno, 1993) e Luiz Carlos Merten (Imprensa Oficial, 2004). Agora virão retrospectivas, dvds, documentários, novos livros. Nada mais merecido. Afinal, quantos marcaram o cinema brasileiro de forma tão intensa e diversa? Mas tinham que ser póstumos? Tristes trópicos.