Beto Magno
Jorge de Lima
poeta em movimento
(Do “menino impossível”
ao Livro de sonetos)
ALFREDO BOSI
Esse movimento na direção do passado real, vivo, concreto, e não de um
passado construído pela cultura hegemônica, se fez mediante a evocação por
imagens. O ritmo destas já não será marcado pela isocronia parnasiana, de que
o metro alexandrino dos sonetos dera exemplo. Trata-se agora do ritmo processional (a certa altura, o poeta invocará a presença de Whitman), que se desdobra
à medida que as imagens se seguem na memória. Uma sensível dose de realismo
entra na composição deste e de outros poemas enraizados na biografia alagoana
de Jorge de Lima. Daí em diante, a sua poesia seria um afloramento de figuras
reais ou imaginárias que o perseguirão até a criação de Invenção de Orfeu. Reais
ou imaginárias: os brinquedos da infância, posto que inventados, foram absolutamente reais, mas do mundo do menino também se diz que foi tirado “do
nada”, como parece acontecer às vezes durante a vivência do sonho: “O menino
poisa a testa – e sonha dentro da noite quieta – da lâmpada apagada – com o
mundo maravilhoso – que ele tirou do nada”.
É um momento fecundo a sintonia deste Jorge de Lima com a eclosão
do romance nordestino do período que vai do aparecimento de A bagaceira
(1928) de José Américo de Almeida aos primeiros anos da década seguinte. Os
nomes formam constelação: Raquel de Queiroz, com O quinze; José Lins do
Rego, com o Menino de engenho, primeiro lance feliz seguido de todo um ciclo
de aprofundamento da experiência de uma infância vivida em clima de patriarcalismo decadente; Jorge Amado, estreando com O país do carnaval, igualmente
passo inicial de uma visão entre romântica e naturalista da sua Bahia... As obras-
-primas não tardariam a chegar: São Bernardo, em 1934, e Vidas secas, em 1938,
de Graciliano Ramos.
O conjunto das obras, apesar da diferença de qualidade estética e dos desníveis de alcance ideológico, chama a atenção pelo que significava de reconhecimento de uma identidade física e social marginalizada: o Nordeste em face da
crescente hegemonia do capitalismo industrial paulista. Não cabe aqui fazer o
mapeamento das vertentes ideológicas em presença. A grande síntese de Gilberto Freyre, Casa grande & senzala, de 1933, deu substância a um pensamento
entre realista (pela riqueza ímpar de observação) e conservador, pela apologia
do estilo tradicional de vida no engenho. Do lado oposto, a exposição da pobreza em toda a região, ferida pela sobrevivência de uma semiescravidão, serviu para
denunciar as iniquidades do sistema econômico e político, o que alentou uma
posição de esquerda em alguns núcleos de intelectuais da província.
Nessa rede de contrastes, a poesia regional de Jorge de Lima oscilou entre o saudosismo da paisagem natural e social vivida na infância e a denúncia
da opressão que pesava sobre o negro, o cambembe e o proletário. Denúncia
que se mostraria lancinante no seu romance Calunga, publicado em 1935,
quadro sem retoques da miséria e da violência dominante no interior de Alagoas. Daí vem o duplo registro da escrita poética feita ora de evocação, ora
de invocação.
Evocação e invocação
A evocação dos lugares é aberta a referências que cumprem a função de
ladrilhos de um mosaico entre pitoresco e sentimental: a estrada de ferro, então
gerida pela GBWR, título de um poema tipicamente processional; os rios, “caminhos de minha terra”, as enchentes, as lagoas, a casa paterna fronteando a Serra
da Barriga e os seus quilombos, os bairros de Salvador, o circo, as igrejinhas,
tudo permeado de nostalgia e afeto. Predomina a sintaxe linear, parataxe que dá
continuidade ao que seria, para o leitor, pura enumeração aparentemente aleatória, mas na verdade penetrada de um calor difuso que tudo unifica.
Uma questão epistemológica talvez não fosse aqui de todo impertinente:
seria esse painel de imagens construído na base de associações já feitas entre
“conteúdos” estocados na memória do adulto, ou estamos diante de uma ativa
intencionalidade da consciência, para usar da linguagem da fenomenologia de
Husserl e Sartre, quando recusam a hipótese de uma imaginação passiva, que se
alimentaria tão só, e necessariamente, de estímulos externos já prontos? (Sartre,
1965, p.139-59). Pela teoria da intencionalidade da consciência imagística, o
mosaico é uma escolha poética deliberada, uma vontade-de-estilo, e não uma
reação automática a determinados estímulos. A ser verdadeira, essa compreensão
da imagem dá ao memorialismo dos poemas nordestinos de Jorge de Lima uma
objetividade complexa, entranhada de subjetividade.
Ao lado da evocação, em terceira pessoa, há a invocação, que pode ser
definida como lembrança com uso da segunda pessoa. São situações e figuras
extraídas empenhadamente da memória para entrarem em regime de presentificação. O exemplo forte é o admirável “Essa negra Fulô”, que abre os Novos
poemas. Não por acaso, nesse texto, que virou antológico, Jorge de Lima trabalha motivos que seriam explorados nos Poemas negros, publicados anos depois.
Tudo é belo e intenso na escrita e na dicção oral do poema. Fulô é flor
negra, como trigueira será a rosa da “Ancila negra”. E é a força da sua presença
ubíqua na vida da Sinhá e do Sinhô que move o apelo reiterado: “Ó Fulô! Ó
Fulô!”. O vocativo ao mesmo tempo chama e potencia a imagem da escrava, que
servia “no banguê dum meu avô”, e dá lugar à fala narrativa, outra conquista do
poema. Cada chamamento, sempre vazado em redondilhos maiores, familiares à
poesia popular luso-nordestina, remete a uma relação estreita da mucama com a
intimidade corporal da senhora. Fulô faz a cama da Sinhá, penteia-lhe os cabelos, ajuda-a a despir-se, abana seu corpo suado, coça a sua coceira, cata cafuné,
balança a rede e, para fazê-la dormir, conta-lhe histórias. Nessa altura o poema
incorpora a recitação de antigos versos folclóricos. Primeiro, duas trovas encadeadas contando a lenda da princesa que possuía um vestido com os peixinhos
do mar trazendo, na coda, a quadrinha que dá fecho e abre a porta para uma
nova narrativa (“Entrou na perna de um pato – saiu na perna de um pinto – o
Rei-Sinhô me mandou – que vos contasse mais cinco”). Depois, a quadra de
embalo para fazer dormir os meninos: “Minha mãe me penteou – minha madrasta me enterrou – pelos figos da figueira – que o Sabiá beliscou”. Prenúncio
dos castigos que a Sinhá vai infligir à mucama?
O último movimento do poema é o reverso cruel da intimidade. Os objetos de adorno e luxo da sinhá somem, a culpa recai sobre Fulô. A proximidade
dos corpos parece ter excitado o sadismo com que a senhora exercerá o poder
sobre a escrava. A punição vai em crescendo, passa do açoite do feitor ao açoite
do próprio Sinhô, que sucumbirá ao desejo de possuir a escrava, enfim acusada
pela Sinhá de ter-lhe roubado o marido...
Assim, a invocação da figura da mucama, acorde lírico inicial, se desdobrou em narrativa feita de situações de intimidade (cama, rede, sono, cafuné...),
deteve-se na (re)citação da trova popular, para, enfim, reverter em acusação de
roubo, com toda a carga perversa trazida pela iniquidade da assimetria social.
Em suma, o que nos deu o poeta? Imagens intencionais da memória com função mimética, expressão de vivências sensuais ou agressivas e escrita configurada
pelo metro popular em simetrias rítmicas e melódicas.
Se “O mundo do menino impossível” significou a mudança consciente da
poética de Jorge de Lima para o espírito e a letra do modernismo, “Essa negra
Fulô” pode ser considerado a pedra angular de uma construção do que viria ser
a chamada poesia negra, produzida ao longo dos anos 1930 e 1940, em consonância com um movimento poético afro-hispânico, que se consolidava nessas
décadas.
Remeto o leitor ao estudo abrangente de Vagner Camilo (2012-2013),
que reconstrói o contexto (literário e ideológico) afro-americano e, em particular, afro-cubano em que se inserem parcialmente os Poemas negros.
Creio que o procedimento de invocação, pela sua tendência individualizante, tenha sido um dos recursos mais fecundos da poesia negra de Jorge de
Lima, na medida em que dele emergem seres humanos na sua complexa fisionomia de escravos e homens e mulheres portadores de uma tradição ao mesmo
tempo vigorosa e recalcada. Chamá-los a ter presença no corpo da poesia culta
é, apesar dos riscos ideológicos que essa operação comporta, um projeto ético e
estético de sobrevivência, quando não de resistência.
Os exemplos não são poucos. Ainda em Novos poemas: “Serra da Barriga”
(“Te vejo na casa em que nasci. Que medo danado de negro fujão!”), “Comidas” (“Iaiá me coma/Sou quimbombô; Bahia, estas comidas têm mandinga”);
“Inverno” (“Zefa, chegou o inverno!”); “Diabo brasileiro” (“Diabo brasileiro,
quero saber quanto dá/ a dezena do carneiro”); “Joaquina Maluca” (“Joaquina
maluca, você ficou lesa”); “Meus olhos” (“Nossa Senhora, minha madrinha/tu
vês as coisas verdes, não é?”).
Nordeste, terra de São Sol!: “Poema de Natal” (“Ó meu Jesus”); “Ave
Maria” (“Boa tarde, ó meu caminho estreito”); “Poema relativo” (“Vem, ó
bem amada”), “Mulher proletária” (“Mulher proletária/única fábrica/que o
operário tem (fábrica de filhos)/tu...”); “Poema à irmã” (“Ó irmã/agora que as noites vêm cedo”); “Poema à bem-amada” (“Amada, não penses”); “Poema
a Marcel Proust” (“Ó meu petit Proust”); “Poema à Pátria” (“Ó grande país”).
Enfim, nos Poemas negros: “Banguê” (“Cadê você, meu país do Nordeste”); “Democracia” (“Ó Whitman”); “Ancila negra” (“Há ainda muita coisa a
recalcar/Celidônia, ó linda moleca ioruba”); “Orambá é batizado” (“Pela fé de
Zumbi te digo”); “Poema de encantação” (“Arraial d’Angola de Paracatu”);
“Janaína” (“... Janaína, dá licença”); “Xangô” [invocação indireta]; “Olá! Negro” (“Os netos de teus mulatos e de teus cafuzos”).
Mediante o vocativo, ou apóstrofe, a linguagem move-se no regime exclamativo, que aproxima o sujeito do objeto, já então subjetivado enquanto
interlocutor trazido pela voz lírica. Se a evocação conserva sempre alguma distância entre o memorialista e a figura lembrada, a invocação convoca a presença
do outro, enlaçando-o, o que pode ser um primeiro passo para a identificação,
virtual passagem para o estado de transe.
Essa profunda sensação de empatia do poeta com figuras de ex-escravos
que povoaram os seus verdes anos parece-me ter entrado na gênese da sua poesia religiosa, surreal ou hermética. O processo semântico abrangente chama-se,
aqui, presentificação. Que pode envolver explicitamente o eu lírico, como em
“Ancila negra”, “Poema da encantação”, “Rei é Oxalá, Rainha é Iemanjá” e na
cadência final de “Janaína”, ou objetivar-se na ação da entidade sagrada, como
em “Benedito Calunga”, “Quando ele vem”, “Xangô”, e na própria invocação
do negro, que se dá em “Olá, Negro!”.
Vejo em “Ancila negra”, a obra-prima dos Poemas negros, uma sutil combinação de imagem evocada e imagem invocada. A terceira pessoa em regime
impessoal do verbo haver (“Há”) abre o poema com um acorde reflexivo
que ressoará, quase bordão, em mais de uma estrofe: “Há ainda muita coisa
a recalcar”, seguido do nome-vocativo e de seu aposto, “Celidônia, ó linda
moleca ioruba”. A alternância (ela/tu) prossegue. A terceira pessoa enunciada
pela desinência verbal do passado (embalou, acompanhou, contou) ao mesmo
tempo se conserva e resvala para a esfera da memória até ceder à marcação da
primeira pessoa: “que embalou minha rede”, “me acompanhou para a escola,
– me contou histórias de bichos – quando eu era pequeno, – muito pequeno
mesmo”.
A partir da segunda estrofe, feita a apresentação evocativa, o poeta trabalha empenhadamente as formas da presença da moleca ioruba nas entranhas
da sua vida de menino nordestino neto de senhores de engenho. A condição
psicológica do recalque é explícita no refrão, mas não oblitera, antes provoca, a
pulsão da memória afetiva, que lateja em todo o poema. O desejo da presença é
força motriz que nada consegue reprimir. Daí a continuidade, tão bem marcada
pelo gerúndio, das carícias de Celidônia, “as tuas mãos negras me alisando – os
teus lábios roxos me bubuiando, quando eu era pequeno, – muito pequeno
mesmo”. Celidônia, nome que traz em si a promessa de um dom do céu. Da profundidade do afeto nasce a palavra de encantamento: “ó linda mucama negra”, beleza que as metáforas exprimem em versos de amor e dor: “carne perdida, – noite estancada, – rosa trigueira, – maga primeira”. Por que perdida, por que estancada? O canto da beleza descanta sinais de morte. É o que a
quarta estrofe dá em cadência narrativa:
Há muita coisa a recalcar e esquecer: / o dia em que te afogaste / sem me avisar
que ias morrer, / negra fugida na morte, / contadeira de histórias do teu reino,
/ anjo degredado para sempre, / Celidônia, Celidônia, Celidônia!
De novo, a ingrata obsessão de reprimir, até o limite do esquecimento, o
que no entanto está doridamente presente na alma do adulto que tudo lembra.
A morte de Celidônia no fundo das águas revela, num átimo, a sua condição de
negra fugida e para sempre exilada do seu reino – de onde ela trouxera histórias
para contá-las ao menino pequeno, muito pequeno mesmo.
O fecho do poema leva o pensamento à suspensão do tempo. “Nunca
mais” e “para sempre” são expressões incisivas de um presente pleno de sentido:
som e, mais que som, ressoo de um sino ouvido pelo memorialista parado na
infância, imerso no encantamento do sono, para sempre.
Nem sempre a presentificação da imagem conjurada se faz em primeira
pessoa. A objetivação da figura de Benedito Calunga, no poema homônimo,
anuncia o quase-transe que é o banzo do fiel tomado por Xangô.
O nome já diz bastante do sincretismo que preside a religiosidade afro-nordestina: Benedito, homem bendito e bento como o santo lendário, padrinho celeste de batismo de tantos e tantos cativos e seus descendentes; Calunga, palavra
de várias denotações, aqui provavelmente designando o negro pobre, o fiel sem
eira nem beira, mas, em geral, pertencente à falange de Iemanjá (calunga também
significa “mar”...). De todo modo, quando o nome “calunga” se reporta a alguma entidade secundária, só excepcionalmente recebe culto particular. Essa carência de força própria leva a entender o estado de derrelicção que marca no poema
a figura de Benedito Calunga. Fraco, ele é avesso ao mal exorcizado nas figuras
tenebrosas do papa-fumo, do pé de garrafa, do minhocão. Cativo sem amparo,
foi seviciado pelo senhor branco que o ferrou como gado e o atou ao lumbambo.
Significativamente, o calunga Benedito não se entregou à sedutora Iemanjá, mas tão somente a Xangô, rei potente de raios e tempestades, cujo banzo
(mais que tristeza, paixão) o alforriou para sempre e o amuxilou, isto é, dele
fez portador da vara listrada de preto e branco, o ixã, que afugenta os espíritos
impertinentes.
Quer-me parecer que tanto na história da moleca ioruba como na do
calunga há sugestão de uma volta dos cativos ao seu reino de origem, mundo
de entidades protetoras, às quais eles pertencem ou pela entrega à morte ou
pela paixão da saudade, o banzo. No breve poema Maria Diamba, a escrava
“só diante da ventania/ que ainda vem do Sudão;/falou que queria fugir/dos
senhores e das judiarias deste mundo/para o sumidouro”. A expressão veemente dos poderes sobrenaturais que levam ao transe ou à
possessão se reconhece nos versos arroubados do poema “Quando ele vem”. O
ritmo beira a alucinação em movimento. Quem vem no vento será um orixá, cuja
presença irrompe no meio dos homens e os toma de assalto ensandecendo-os.
Uma análise rítmica e fonética revelaria toda a riqueza dessa verdadeira tempestade sonora, provavelmente uma das mais expressivas da dicção afro-nordestina
brasileira.
A entidade ao mesmo tempo zune como o vento, devora quanto pode das
iguarias baianas, alagoanas, pernambucanas... (caruru de peixe, efó de inhame,
ogudé de banana, olubó de macaxeira, pimenta malagueta...), mas sobretudo
apodera-se das almas dos seus crentes de tal modo que “Quando ele chega, tudo
fica banzando à toa”. De novo, como na história de Benedito Calunga, o banzo
conota um estado de corpo e de alma que arrasta ao delírio, à autodestruição, à
luxúria desenfreada. Tristeza turva que se assemelha à perda da graça, tentação
de pecado mortal, em termos de devoção cristã, pela cega violência que desencadeia nos sentimentos e atos dos que a experimentam.
A intuição do caráter metafisicamente negativo do Mal como privação do
bem e do ser (definição que lhe deu a teologia, de Agostinho a Tomás de Aquino) reponta na imagem do “oco do mundo”, o vazio abissal de onde “ele” vem:
“Donde é que ele vem?/Vem de Oxalá, vem de Oxalá/vem do oco do mundo/
vem do assopro de Oxalá/ vem do oco do mundo”. Mas é um vazio esse oco do
mundo que não implica a ausência da divindade, antes professa abertamente a
sua presença originária atribuindo-lhe o nome sagrado de Oxalá, o criador e procriador. Que o sopro de Oxalá arranque do oco do mundo ventos destruidores, e
seja, ao mesmo tempo, o orixá da criação, dá o que pensar, no caso, faz pensar no
caráter dramaticamente contraditório de todas as forças naturais e sobrenaturais.
Poemas negros tem por fecho “Olá, Negro!”: invoca as gerações descendentes de escravos e exalta a força de alma de um povo capaz de redimir generosamente a opressão a que o branco o submeteu durante séculos. Aqui não se
trata de glosar o discurso neutro e conciliante da “contribuição” do negro à formação do homem brasileiro. Aqui a imagem da iniquidade irrompe com todas
as letras: “a raça que te enforca, enforca-se de tédio, negro”.
O escravo aparece em suas múltiplas figuras: “Pai-João, Mãe-negra, Fulô,
Zumbi, negro-fujão, negro cativo, negro rebelde, negro cabinda, negro congo,
negro ioruba”, e em seus múltiplos lugares de eito: “negro que foste para o algodão dos U.S.A., – para os canaviais do Brasil”. Mas a nota original do poema
incide no poder transformador que exerce sobre “a alma branca cansada de todas
as ferocidades” a alegria que emana dos jazzes e a gama de sentimentos expressos
nos blues, songs, lundus. O riso franco, “a tua gargalhada que vem vindo”, junto
com a música, vem iluminar as noites dos brancos. Essa é a figura que remata o
poema, que poderá ser lido e contestado como ideologia ou aceito como esperançosa contraideologia, opções contrastantes que comprovariam a riqueza de
significações da linguagem poética. Poesia bíblica e cristã A biografia de Jorge de Lima e do seu dileto amigo e poeta Murilo Mendes atribui a conversão ao catolicismo de ambos à influência que neles exerceram a pessoa, a arte e o pensamento religioso de Ismael Nery. A morte deste
original pintor surrealista, em 1934, teria sido decisiva para a criação do lema.
“Restaurar a poesia em Cristo”, que presidiu a composição de Tempo e eternidade. O livro traz poemas de Jorge de Lima e de Murilo Mendes centrados em
princípios de um fervoroso catolicismo e vazados em imagens do Antigo e do
Novo Testamento. Mas, ao passo que são numerosos e reveladores os depoimentos que Murilo Mendes (1996) deixou encarecendo a presença de Ismael
Nery na sua concepção de vida e de poesia, o testemunho de Jorge de Lima
é escasso, embora expressivo.1
Lembro a dedicatória de Tempo e eternidade e
a criação de Pintura em pânico, livro de fotomontagens certamente inspirado
nos procedimentos artísticos de Nery. E esta referência, colhida em entrevista
a Homero Sena:
Pois num simples verso de Ismael Nery, que você pode ler aqui neste outro
livro – “Meu Deus, para que puseste tantas almas num só corpo?” – sente-se a
influência do escritor italiano [Pirandello]: após a fragmentação da personalidade, a tragédia de reconstituição da unidade, quando no mesmo poema exclama:
Ó Deus estranho e misterioso, que só agora compreendo! Dai-me, como Vós tendes,
o poder de criar corpos para as minhas almas. (Lima, 1985b, p.85)
Como pensador, Ismael Nery concebeu um sistema que Murilo Mendes
(1996, p.47-54) batizou de “essencialismo”. Não cabe aqui sequer tentar resumi-lo, o que em parte já foi feito pelo próprio Murilo de modo exemplarmente
didático. Ao menos dois de seus princípios centrais parece-me que estão presentes, sob as espécies de imagens, na poesia religiosa de Jorge de Lima encetada
pelos poemas de Tempo e eternidade e desdobrada em A túnica inconsútil e em
Anunciação e encontro de Mira-Celi.
O primeiro e mais fecundo princípio é o da “abstração do tempo e do espaço”. A matriz dessa suspensão de ambas as categorias é mística e encontra-se
numa reflexão de Mestre Eckhart:
Não há maior obstáculo para a alma, quando ela quer conhecer a Deus, do que
o tempo e o espaço. O tempo e o espaço, com efeito, não passam de partes,
enquanto Deus é a unidade. Para que a alma possa conhecer a Deus, é preciso
que ela o conheça além do tempo e do espaço, porque Deus não é nem isto nem
aquilo, como estas coisas diversas. Deus é Unidade. (apud Mendes, 1996, p.139)
Nas palavras de Jorge de Lima: “Não me conformo nem com o espaço nem
com o tempo. Nem com o limite de coisa alguma”. E adiante: “Ismael explicava-
-nos sua vocação divina, sua inconformidade com o tempo e o espaço, a irreprimível necessidade que sentia de estar em todos os lugares ao mesmo tempo”.
O segundo princípio, que Jorge de Lima já reconhecera no teatro de Pirandello, é o da multiplicidade inerente no interior de cada pessoa: as muitas
ESTUDOS AVANÇADOS 30 (86), 2016 191
almas em um só corpo, e seu constante movimento, o que dá origem a combinações e metamorfoses surpreendentes. Processos surrealistas como deslocamentos, condensações e colagens constelam a expressão poética desse motivo
recorrente no pensamento de Ismael Nery.
É claro que não se deve reduzir a princípios abstratos a obra de Jorge de
Lima escrita com o fim explícito de restaurar a poesia em Cristo. Entre o conceito e a forma poética, quantas mediações de imagem e de som! Mediações que
são parte da força da imaginação e da música difusa nesse extraordinário poeta
lírico.
De todo modo, há convergência no trabalho de significação que envolve
a intencionalidade dos motivos e temas. Na escrita singular de Jorge de Lima a
suspensão do tempo em face da intuição da eternidade não decai à recusa maniqueísta do momento concretamente vivido pela natureza e pelo homem. Há sublimação, mas não há a tentativa inglória de supressão radical do espaço-tempo,
a qual, de resto, teria inibido o afloramento de toda e qualquer imagem... A
propósito, convém ler as agudas observações de Roger Bastide (1997, p.119-
41) a respeito da conservação das fontes populares e, especialmente, negras na
poesia religiosa e metafísica de Jorge de Lima.
O cosmos, criado por um Deus generoso, esplende nos versos de “Distribuição da Poesia”, sem que a beleza que dele emana, e que o poeta oferece ao
Senhor, deixe de resistir no tempo e no espaço. Pelo contrário, a criação se dá ao
poeta de forma sincrônica: a simultaneidade das imagens evocadas mimetiza o
sentimento do perene que transcende a fugacidade dos momentos sucessivos no
tempo do relógio. Em outras palavras: a eternidade supera – conservando dialeticamente – o tempo. Glosando a sentença tomista, se a alma supõe a existência
material do corpo, a eternidade supõe a vigência do tempo: “Mel silvestre tirei
das plantas/ sal tirei das águas, / luz tirei do céu./ Escutai, meus irmãos: poesia
tirei de tudo para oferecer ao Senhor”.
De todo modo sempre subsiste, depois da Queda, o “mundo”, na acepção
joanina de locus originário do mal e da morte, da iniquidade e do medo, e, como
tal, também pesa em alguns poemas como noturno caos, o outro lado do cosmos luminoso: “Capitão-mor, que noite escura/ desabou neste cais/ desabou
neste caos!”.
Cosmos de luz e caos trevoso convivem ora no regime do tempo, que de
repente passa e muda de figura, ora ansiando pela irrupção do eterno, de onde
procede a salvação bíblica e cristã.
Os símbolos do tempo voraz são diversos: o vento, motivo recorrente de
toda a poesia de Jorge de Lima, e que anima o mais belo dos poemas de Tempo
e eternidade, “Na carreira do vento”; a tormenta, que tudo arrasa e a todos apavora; a tarde oculta em um “tempo” sem tempo, infinitamente vasto, onde os
horizontes são as nuvens que fogem...; as estrelas já mortas, mas ainda cintilantes
na noite escura, espaço negro e vazio, contíguo e contrário ao “sono iluminado
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que Deus me deu antes de me criar”. Coexistem tensamente esses fenômenos
mutáveis do Tempo e o mistério do homem destinado ao infinito.
“Obrigado, ó mortos. Da noite que vim/ pra noite que vou/ relâmpago
de Deus - sou.” Ou: “Carne não me satisfaz./Não conheço coisas necessárias.
/ Tudo é casual neste charco. / Quero ser ensinado por Deus”.
E há poemas em que é a oposição que avulta e torna-se agônica: “O poeta
vence o tempo”, “O poeta diante de Deus”, “Os voos eram fora do tempo”,
“Adeus, poesia”.
Era de esperar que essa tensão entrasse também no reino deste mundo na
forma de profecias apocalípticas. A História nos últimos dias será julgada para
dar lugar à Parusia: “Eu vos anuncio a consolação” e “Sicut erat”: “Não precisarás de ponteiros para marcar o tempo”.
Quanto ao segundo princípio, inspirado, por hipótese, no essencialismo de
Ismael Nery (a multiplicação das almas no corpo e a respectiva metamorfose na
percepção dos seres) realiza-se em A túnica inconsútil e no poema de Mira-Celi.
A túnica de Cristo é una, sem emendas, ao passo que as roupagens do mundo
são, como o tempo, inúmeras, fragmentadas, díspares. Não será fácil, talvez nem
sequer necessário, separar abstratamente os dois princípios assinalados, quando
se lê um poema de A túnica inconsútil, “Poema do Cristão”, que abre o livro. O
descarte, que nele se opera, de toda ordem cronológica e de toda espacialização
pontual combina-se com as transformações que sofrem os objetos da percepção.
“A minha visão é universal/e tem dimensões que ninguém sabe./ Os milênios
passados e os futuros/não me aturdem, porque nasço e nascerei,/porque sou
uno com todas as criaturas,/com todos os seres, com todas as coisas/que eu
decomponho e absorvo com os sentidos,/e compreendo com a inteligência/
configurada em Cristo.”
A linguagem é assertiva, o tom é o de quem professa abertamente a sua
crença e a subjetiva ao extremo: “estou molhado de limos primitivos/e ao mesmo tempo ressoo as trombetas finais (salto do Gênesis ao Apocalipse); opero
transfusões de luz nos seres opacos”.
Há poemas construídos em torno das mutações do cosmos: “Onde está
o mar?”, “O novo poema do mar”, “A multiplicação das criaturas”, “O monumento votivo”, já plenamente surrealista apesar do imaginário católico tradicional que o constitui, do mesmo modo que se vale extensamente de figuras do
Velho Testamento o poema “Sabereis que corri atrás da estrela”.
O livro, em virtude do forte veio programático que o permeia, tem altos e
baixos. Talvez o ponto mais alto tenha sido alcançado na criação de um poema
de estrutura narrativa saliente, “A ave”, que, aliás, tem merecido a preferência
da maioria dos seus leitores.
Diversamente de boa parte dos poemas longos de A túnica inconsútil, “A
Ave” mantém cerrada unidade temática não se dispersando em figuras aleatórias
que, às vezes, interrompem o fluxo semântico do texto. Aqui há uma imagem
ESTUDOS AVANÇADOS 30 (86), 2016 193
condutora, cuja presença lhe empresta o papel de verdadeira protagonista de
uma narrativa bem articulada. Passo à glosa do texto.
Os atributos da ave são bem delineados. Ela é estranha, desconhecida de
todos, até mesmo dos homens do mar e dos andarilhos. A sua descrição, porém,
foge a qualquer denotação realista, pois “era antropomorfa como um anjo e
silenciosa como qualquer poeta”. A partir do décimo verso, “Primeiro pairou
na grande cúpula do templo”, a ave, embora habitante de outros climas, deseja
entrar em contacto com o mundo dos homens. Pousa no lugar sagrado, de onde
é tangida pelo sacerdote, assim como seria enxotada do farol, sem que ninguém
quisesse alimentá-la ou sequer acolhê-la com benevolência. O poema avança
pela dramatização da recusa: a ave é demonizada pelas mães que temem algum
malefício que sobrevenha aos filhos, caso se abriguem à sombra das suas asas.
Todos os males lhe são imputados: a enchente, a seca, a morte dos cordeiros.
Negam-lhe até a água, e ela tomba em terra “como um Sansão sem vida”.
Nos versos finais, a ave morta é descoberta por um pescador e santificada
pela evocação dos benefícios que prestara em vida: levara ovos aos anacoretas,
cedera as penas para o gibão do mendigo... Enfim, o chefe do povo reconhece-a
como o rei das aves, “que desconhecemos”. O final surpreende e comove pelo
acento afetuoso das palavras ditas pelo filho mais moço do chefe: “Dai-me as
penas para eu escrever a minha vida/ tão igual à da ave em que me vejo/ mais
do que me vejo em ti, meu pai”. Consuma-se a identificação que se segue à lembrança viva da ave morta. O jovem que assim fala era “sozinho e manso” como
a ave rediviva no seu coração.
No contexto religioso de A túnica inconsútil, teríamos aqui uma alegoria
da vida, paixão, morte de Cristo? É uma leitura possível, senão provável. Não
faltam sinais de afinidade com a narrativa do Novo Testamento. A ave procede
de uma “outra atmosfera”, de um “outro mistério” e vem a este mundo. E “o
mundo”, como está dito na abertura do evangelho de João a respeito de Jesus,
“não o conheceu”. A rejeição é violenta por parte dos sumos sacerdotes que não
toleram vê-lo pregando no templo, o expulsam e tentam lapidá-lo (João, 10,
31). A ave tem forma humana como antropomorfa é a divindade que, pela encarnação, “se fez homem e habitou entre nós” (João, 1, 14). Em ambas as narrativas, há o momento em que acusam o estranho de ter poderes demoníacos.
Solitários e desamparados, ninguém lhes oferece abrigo, não tendo, como diz o
Filho do Homem , onde repousar a cabeça (Mateus, 8, 9). E à ave... “ninguém
lhe ofereceu um pedaço de pão, ou um gesto suave onde se dependurasse”.
A ave morreu de sede: uma das últimas palavras de Cristo na cruz foi “Tenho
sede” (João, 19, 28). A ambos negaram água.
Na Escritura a ressurreição segue-se à morte. No poema, a ave morta ressurge na memória dos que receberam suas graças. Tardiamente, o chefe a reconhece como rei das aves, mas cabe a seu filho, “sozinho e manso”, reconhecer-se
a si mesmo na ave, mais do que na imagem do próprio pai: “Dá-me as penas
194 ESTUDOS AVANÇADOS 30 (86), 2016
para eu escrever a minha vida/ tão igual à da ave em que me vejo/ mais do que
me vejo a ti, meu pai”. Um ato de identificação gerado pelo amor e não pelo
sangue.
O risco do pensamento alegórico é conhecido: trata-se de um procedimento comparativo que tende a fechar o universo da significação na medida
em que remete a um “outro discurso”, como ensina a etimologia mesma da
palavra. O símbolo, em compensação, embora tenda igualmente a aproximar
duas expressões diferentes mediante o escavamento de suas semelhanças, teria
a faculdade de abrir-se a várias conotações. O pensamento simbolizador admite
mais de uma significação possível, ao passo que a alegoria aperta os laços que,
por hipótese, atam a imagem a um determinado conceito. Talvez não seja forçar
os termos de uma definição dizer que a alegoria é uma variante concentrada e
unidimensional do pensamento simbólico. Essas considerações têm por objetivo sugerir que pode haver outras interpretações de A Ave, que dariam ênfase a
outros perfis do poema e a outras afinidades latentes. A questão se torna particularmente viva quando temos pela frente uma das obras mais enigmáticas de
Jorge de Lima, Anunciação e encontro de Mira-Celi.
Mira-Celi
A decifração desse livro singular é tarefa difícil, mas o intérprete desnorteado consola-se de seu embaraço ao ler o artigo que Jorge de Lima escreveu
para a revista Vamos Ler, em 16 de março de 1943, sob o título “Explicação de
Mira-Celi”. Começa dizendo: “Acho dificuldade de explicar à professora americana a vida de Mira-Celi. A vida, a origem, os jogos, o conhecimento dela, tudo
inexplicável”. O texto continua, dando a entender que se trata de uma entidade
fugidia, vinda provavelmente da eternidade, e que aparece a seu bel-prazer, mas
de preferência nos momentos de solidão e febre do poeta. A sua esquivança
deixa o leitor perplexo e o convida a percorrer os 59 poemas que compõem o
livro, e que dão a impressão de serem partes de um conjunto coeso, e não textos
independentes.
No encalço de um motivo condutor, o que sugere aparência de unidade é
a recorrente pergunta sobre a natureza mesma de Mira-Celi, questão afim à do
significado que assume para o poeta.
O poema de número 2 abre-se com uma definição assertiva:
Tu és, ó Mira-Celi, a repercutida e o laitmotivo / que aparece ao longo do meu
poema.
Cabe a interrogação: essa presença constante, que remete a um ser (um
espírito, uma força natural ou sobrenatural) viveria, de algum modo, fora ou
dentro do sujeito lírico? Ambas as condições de existência estão configuradas
no poema:
Dentro: “Nele [no meu poema] estás construída à semelhança de um
imenso órgão/ movimentado pelo meu espírito”. Fora: “Ora és sacerdotisa, musa, louca ou apenas ave”,
Dentro e fora:
Pouca gente encontrará a chave deste mistério./ E os olhos que perpassarem
através de tantos poemas que não/ findam e que se transformam de momento
a momento,/ não compreenderão o movimento perpétuo/ em que nos perseguimos e nos superpomos./ Outras vezes as minhas mãos são um disfarce de
ti,/ escrevendo a tua história ou me sustentando a face.
Reversibilidade que, dependendo do contexto, aponta o eu como condição da existência de Mira-Celi, ou faz desta uma força transcendente que o toma
de assalto e o inspira. Tangenciamos aqui uma das matrizes românticas e simbolistas da crença na inspiração como fonte inconsciente do poema. Se esta é uma
das missões inegáveis de Mira-Celi, convém, sempre no clima da reversibilidade,
distinguir dois vetores complementares da inspiração:
Mira-Celi é inspiração do poeta. Trata-se do procedimento sintático classificado como genitivo subjetivo: a inspiração provém do eu lírico, sua fonte e
gênese nele demoram.
Na outra ponta, Mira-Celi é inspiração para o poeta, genitivo objetivo: o
que transcende a pessoa do artista é força que a preenche e inspira. O transcendente vai ao encontro da imanência, o objeto norteia e guia o sujeito.
Nas palavras de Jorge de Lima, sempre mais fecundas do que a prosa que
tenta interpretá-las: “Quase sempre te transformo para te distribuir / e quando
me resta uma única migalha, reconstruo-te como uma catedral e alimento-te
como uma criancinha”.
Não creio que haja nesta multifacetada invocação de Mira-Celi margem
para reduzi-la à figura da Musa ou a alguma outra alegoria unidimensional.
Mesmo quando o poeta a chama abertamente de “cristocêntrica”, como o faz
no quinto poema, a polivalência simbólica rege o apelo a essa figura, que reaparecerá em mais de uma passagem de Invenção de Orfeu. De certo modo, o
sentido do transcendente calado na História lembra a síntese de Teilhard de
Chardin, pela qual o cosmos se move na direção do ponto ômega da consciência
em Cristo:
Quando te aproximas do mundo, Mira-Celi, /sinto a sarça de Deus arder em
círculo, sobre mim. (poema 6)
Há quantos milênios bate no meu barro o vosso diapasão de luz? / Adonai,
vejo presenças nas ventanias. / são vossas mãos por acaso ou vossa túnica multiplicada,/ ou apenas Mira-Celi, a de fogo e música, a reclusa e onipresente?
(poema 50)
Livro de sonetos
Dois caminhos concorrem para desvendar os significados expressos ao longo do Livro dos sonetos. Pode-se começar pelo mais viável: a procura dos motivos
recorrentes que formam, às vezes, breves ciclos temáticos. Um exemplo feliz
desse procedimento é o estudo de Ana Maria Paulino (1995), que se detém no exame de núcleos semânticos, de resto disseminados em quase todas as obras
de Jorge de Lima: sono e sonho, memória da infância, mar, morte, musa, candeeiro...
O elenco poderia enriquecer-se com outros apoios referenciais que constelam o amplo imaginário do poeta: a noite, as ilhas, as aves, o galo, cavalos encantados, a lâmpada marinha, a rosa, a bem-amada, a eterna infanta... Os riscos
eventuais desse caminho (o que não impede de percorrê-lo) são os desvios de
rota que nos fazem cair na dispersão analítica ou na exegese do todo a partir do
fragmento.
O outro modo de ler o Livro de sonetos é aprofundar a análise da forma
viva interna que anima cada motivo e lhe concede o estatuto de criação poética.
Trata-se aqui do conhecimento da imagem. No seu ensaio denso e arguto, O engenheiro noturno, Fábio de Souza Andrade (1997) elegeu essa estrada real que o
conduziu a uma interpretação original do Livro de Sonetos e Invenção de Orfeu.
Considerando os vetores de cada um dos métodos, pode-se concluir que
ambos acabam construindo um todo indivisível. Imaginário e imagem, o universo figural do poema e o seu procedimento estruturante remetem um ao outro na
hora da interpretação do texto. A sua estreita afinidade tem por matriz “a rainha
das faculdades da alma”, expressão com que Baudelaire define a imaginação.
Sigo de perto algumas passagens do poeta-crítico extraídas de suas “Curiosidades estéticas”:
Misteriosa faculdade esta rainha das faculdades! Ela afeta todas as outras; ela
as excita, leva-as ao combate. [...] Ela é a análise, ela é a síntese; e no entanto
homens peritos na análise e suficientemente aptos para fazer um resumo podem
ser desprovidos de imaginação. Ela é isso, mas não é completamente isso. É a
sensibilidade e contudo há pessoas muito sensíveis, demasiado sensíveis talvez,
que dela carecem. Foi a imaginação que ensinou ao homem o sentido moral da
cor, do contorno, do som e do perfume. Ela criou, no começo do mundo, a analogia e a metáfora. Ela decompõe toda a criação, e, com os materiais acumulados
e dispostos segundo regras cuja origem só se pode encontrar no mais fundo da
alma, ela cria um mundo novo, produz a sensação do novo. Como ela criou o
mundo (pode-se decerto dizê-lo, até mesmo em um sentido religioso), é justo
que ela o governe. [...]
A imaginação é a rainha do verdadeiro, e o possível é uma das províncias do
verdadeiro. Ela é positivamente aparentada com o infinito. [...]
O governo da imaginação
Ontem à noite, depois de ter enviado as últimas páginas de minha carta, em
que eu havia escrito, mas não sem certa timidez: Como a imaginação criou o
mundo, ela o governa, eu folheava a Face nocturne de la Nature, e me deparei
com estas linhas, que cito unicamente porque são a perífrase justificativa da linha
que me inquietava: “By imagination, I do not simply mean the common notion
implied by that much abused word, which is only fancy, but the constructive
imagination, which is much higher function, and which, in as much the man is made in the likeness of God, bears a distinct relation to the sublime power by
which the Creator projects, creates and upholds his universe.” Por imaginação
eu não quero somente exprimir a ideia comum implicada na palavra de que se
faz tão grande abuso, a qual é simplesmente fantasia, mas justamente a imaginação criadora [note-se como Baudelaire traduziu o original inglês “constructive”
AB), que é uma função muito mais elevada, e que, na medida em que o homem
é feito à semelhança de Deus, guarda uma relação distinta com essa potência
sublime pela qual o Criador concebe, cria e mantém esse universo. (Baudelaire,
1951, p.764-72)
Baudelaire retoma e salienta a distinção originariamente romântica entre a
imaginação reprodutiva, colada à representação do real, e a imaginação produtiva, que o texto inglês chama “construtiva”, e que o poeta traduz como “criadora”. Se atentarmos para a qualidade da imagem presente no Livro dos sonetos,
concluiremos, à primeira vista, que é essa última que constitui o procedimento
corrente em quase toda obra. Jorge de Lima constrói sistematicamente o que
Baudelaire considera criação de um mundo novo, tão verdadeiro como o que
nos é dado pela percepção cotidiana.
Não me deterei aqui na rede de influências ou afinidades desse potenciamento da imagem inerente à poesia de Jorge de Lima. Romantismo, simbolismo, expressionismo (no caso da sua pintura), surrealismo, hermetismo e até
mesmo barroco, tudo permeado de ardente fé cristã: eis os movimentos literários e culturais que tem sido assinalados para situar o poeta na história da cultura
brasileira e, lato sensu, ocidental. Creio que será sempre plausível descobrir no
seu itinerário poético traços deste ou daquele estilo de época. Romântica é a sua
aberta preferência pela expressão das instâncias subjetivas ou líricas da poesia.
Simbolista o tom solene e a dicção elevada dos sonetos. Surrealista a atmosfera
onírica e febril, bem como o procedimento de colagem das figuras que aparenta
a poesia e as fotomontagens. Hermético é o sentido difícil de precisar de tantas
de suas aproximações verbais aparentemente aleatórias. Enfim, barroca seria a
própria proliferação de imagens, analogias e metáforas que vai em crescendo do
Livro dos sonetos até Invenção de Orfeu.
Mas à medida que se afunila o estudo do seu imaginário e dos seus meios
estilísticos, deparamos com a voz singular de uma persona inconfundível. E esbatem-se no quadro do discurso crítico as classificações histórico-literárias e as
tentativas de fazer tipologias psicanalíticas. Até mesmo a pertença do homem
público Jorge de Lima a uma corrente renovadora do catolicismo social deve ser
relativizada enquanto fator externo gerador de poesia. A chamada conversão de
Jorge de Lima, simultânea à de Murilo Mendes, e confessadamente inspirada na
religiosidade cristã de Ismael Nery, tem raízes no chamado “renouveau catholique”, do primeiro quartel do século XX. Em termos literários, se expressou na
poesia de Péguy, no romance de Bernanos e no teatro de Claudel. Ideologicamente só Péguy inclinou-se para o socialismo, e certamente vem dele a denúncia da exploração do proletário, que se encontra na poesia regional, negra e, a espaços, na vertente religiosa do nosso poeta. No entanto, seria forçar a mão
estabelecer conexões estreitas entre a difusa mentalidade anticapitalista católica
(encontrável também em alguns círculos ultraconservadores, aos quais Jorge de
Lima nunca aderiu) e o imaginário entre místico e apocalíptico dos seus últimos
livros.
A sua visão de mundo, expressão aqui mais adequada do que a sua ideologia, tem a ver com os dogmas centrais do catolicismo ortodoxo: o “mundo” e
o “reino deste mundo” estão contaminados pela Queda, enquanto universo da
violência, do poder e da iniquidade. Desse magma obscuro, de que o demônio
é o príncipe, veio salvar-nos Cristo, Filho de Deus e Filho do homem (ambas as
denominações constam nos evangelhos), mediante a graça concedida a todos os
homens de boa vontade. Mas este mundo e o reino de Deus estão misturados,
de onde a perene contradição em que se debatem todas as gerações. No último
horizonte há a perspectiva de um juízo final, precedido de anos apocalípticos,
nos quais homem e natureza padecerão de males devastadores.
O simples enunciado dessa revelação é o bastante para compreender o
vetor suprapolítico (embora não necessariamente apolítico) da esperança escatológica, voltada para um tempo de redenção que rematará a história sofrida da
humanidade. Nessa ordem de considerações, entende-se também o teor visionário de tantas imagens constantes do Livro de sonetos. Imaginação produtiva,
construtiva e criadora, segundo as reflexões de Baudelaire, na medida em que
se trata de imagens concebidas pela visão de um futuro inteiramente constituído pelo desejo (ou pela aversão) do poeta. O que não lhes tira a qualidade de
reais, se é verdade que toda imagem denota algum fenômeno percebido ou
rememorado. Cabe aqui uma observação sobre dois sentidos da palavra visão:
faculdade de ver os objetos do mundo exterior, sinônimo de percepção realista;
e aparecimento, epifania, que pode ocorrer com seres anômalos ou extraordinários, videntes, visionários, santos... e alguns artistas e poetas. Essa bivalência
do termo visão remete à dualidade do termo “imagem”, que pode reportar-se,
como se viu linhas acima, ora ao objeto da percepção comum, socializada, ora a
uma intencional construção-criação da mente poética.
Entramos, nesta altura, em pleno debate entre realistas e surrealistas. Ancorados no trabalho da imaginação durante os sonhos e, complementarmente,
no arbítrio do artista que faz colagens de corpos, cenas e quadros com vistas à
produção de novas figuras, os surrealistas preconizam literalmente a criação de
uma nova e suprarrealidade. Para tanto, faz-se necessário que a imaginação se
valha das percepções da vigília ou do devaneio para combiná-las, desconstruí-las
e reconstruí-las como um novo demiurgo que tira da sua vontade e do inconsciente mundos paralelos ao do bom senso convencional. No limite, os efeitos
desse processo combinatório podem despertar no leitor a suspeita de que se
trata de um hermetismo programado, o que, no caso de Jorge de Lima, me pareceria um juízo equivocado. Prefiro atribuir a gênese da escrita enigmática em parte ao “estado hipnagógico” em que, em dois meses de febre e sedação, ele
escreveu os 78 sonetos deste Livro repleto de visões, algumas alucinadas, outras
dotadas de serena harmonia.2
No quarto soneto, “Sei Teu grito profundo...”, a alma confessa ao Cristo
crucificado (Ó Desnudado) o seu estado de derrelição. O motivo tem raízes na
literatura mística do outono da Idade Média, de que a Imitação de Cristo é o
mais perfeito modelo. A originalidade do soneto está na profusão de imagens,
verdadeiras células metafóricas. A alma sabe-se presa à raiz divina da qual tudo
recebeu: origem, patas, asas, enumeração insólita, que aproxima a gravidade
animal das patas e a graça aérea das asas, atributos contraditórios do ser decaído
e redimido. Não se detém aí a imaginação construtiva do poeta: ele compara-se
à “pobre enguia de águas rasas”, ao passo que de Cristo diz que é o “Nazareno
dos lagos e lume primo”, reunindo pecador e redentor mediante a parábola
evangélica do joio misturado ao trigo até que o Juízo Final os separe. O fecho
é à primeira vista hermético: “Ó Desnudado! é meu todo o disfarce/em revelar
os tempos que persigo/- na vazante maré com inversa proa”. A alma, diferentemente da divindade que nada oculta, dissimula (disfarça) a sua condição de
homem vivendo à mercê da corrente do tempo e encalhado na maré baixa em
barco sem norte (inversa proa).
A face temível dos tempos derradeiros está manifesta em um soneto coesamente armado: “Se a estrela de absinto desabar”. Todos os signos, concebidos
por uma imaginação febril, prenunciam a agonia do universo. Nenhuma glosa
prosaica pode substituir a leitura integral do soneto:
Se a estrela de absinto desabar
terei pena das águas sempre vivas
porque um torpor virá do céu ao mar
amortecer o pêndulo das vidas.
Sob o livor da morte coisas idas
já são as coisas deste mundo. No ar
as vozes claras, tristes e exauridas.
Há sombras ocultando a luz solar.
Galopes surdos, cascos como goma.
Viscosos seres, dedos de medusas
Contando silenciosos coisas nulas.
Verdoengo e mole um ser estranho soma:
Crânios como algas, vísceras confusas,
massas embranquecidas de medulas. As sonoridades escuras, surdas, cavas, em sintonia com o lívido torpor das
imagens provêm da peculiar condição do poeta, médico de enfermos terminais,
debruçado sobre corpos na decomposição da agonia, e crente visionário das
cenas figuradas no Apocalipse de João, também chamado Livro da Revelação.3
Não se trata, evidentemente, de um texto isolado. O mesmo pressentimento de uma hora fatal, convertida em tempo de agora pelo poder da visão,
aproxima quatro sonetos seguidos.
“O horizonte era estreito”, que termina assim: “O oceano apodreceu no
próprio leito,/ e uma lava comum, estranha lava/de loucura inundou bestas
e gênios”; o soneto “O mundo estanque, o céu alucinado,/o olhar vítreo de
Deus furando o tempo”; o soneto “Tudo estancara. Eu mesmo. Do alto vi-me”;
e “Sentado em pirâmides vulgares”, cujo terceto final trai o desejo de ver a catástrofe universal: “Quero assistir ao trágico desfecho/desse último espetáculo
encantado /que irá encher espaço, terra e mares”.
A concorrência de visão e transformação move-se no limite do que seria
uma poética surrealista difusa no Livro de sonetos. É o que sugere o soneto “A
torre de marfim, a torre alada” na procissão de imagens em perpétuo movimento:
A torre de marfim, a torre alada,
esguia e cinza sob o céu cinzento,
corredores de bruma congelada,
galerias de sombras e lamentos.
A torre de marfim fez-se esqueleto
E o esqueleto desfez-se num momento,
Ó! Não julgueis as coisas pelo aspecto,
que as coisas mudam como muda o vento.
E com o vento revive o que era inerme.
Os peixes também podem criar asas,
as asas brancas podem gerar vermes.
Olhei a torre de marfim exangue
e vi a torre transformar-se em brasa
e a brasa rubra transformar-se em sangue.
O anúncio do desfecho de toda a história não é única missão do poeta
visionário. Há também a hora de contemplar a luta que se trava no meio do
caminho. O soneto “Há cavalos noturnos, mel e fel” sobressai pela densa concisão com que trabalha o tema do embate das forças do bem e do mal, unindo a imagem sobrenatural do Arcanjo Miguel com o ícone do grande visionário da
tradição literária, o Quixote de Miguel de Cervantes.
Há cavalos noturnos: mel e fel.
O cavalo que vai com Satanás
e o cavalo que vai com São Miguel.
O cavalo do santo vai atrás,
e vai na frente a azêmola cruel.
Mas vão os dois e cada qual com um ás.
No cavalo da frente o atro anjo infiel
com façanhas de guerra se compraz.
São Miguel de la Mancha, D. Quixote,
Garcia Lorca viu-te, vejo-te eu
na luta igual com o ás da negação,
arremeter com lança em riste e archote.
E ao fim de tudo há um anjo que venceu:
Tu, D. Quixote da Anunciação.
Algumas observações tópicas:
“Há cavalos noturnos: mel e fel”. Mel e fel – a suprema doçura e o amargor extremo, contrários e contíguos na vida e no verso. Bem e mal cavalgam
na noite, pois os cavalos são noturnos e escura é a travessia em que transcorre a
história dos homens.
Adiante, com a sobriedade da denotação clássica, vêm os nomes dos cavaleiros. São dois anjos: aquele a quem foi dada a primazia no governo do mundo,
Lúcifer, degradado em Satanás; e aquele que luta contra os poderes das trevas,
audaz, mas sem violência, São Miguel.
“O cavalo do santo vai atrás”. Indício da arrogância e açodamento do Mal
ou sinal da primazia do tentador durante o percurso que nos foi traçado entre o
nascer e o morrer? Haverá alguma ênfase intencional neste enunciado da posição
dos ginetes. A rigor, não seria logicamente necessário dizer que vai na frente a
azêmola cruel. Mas quanto se perderia se fosse omitida a palavra árabe, rara e
expressiva, que marcou, desde a Idade Média, a inferioridade da raça, sendo
azêmola sinônimo de besta, animal rude e tosco, se comparado à fiel nobreza
do corcel!
“Mas vão os dois e cada qual com um ás”. A disparidade das montarias é
contrabalançada pelo valor atribuído aos cavaleiros. A conjunção “mas” adverte
que cada um ostenta a mesma qualidade mestra de ás. A diferença, porém, re- ponta, e é tudo. O cavaleiro da frente, com ser anjo, é não só atro como infiel,
enquanto transgressor da lei divina e causa da queda das primeiras criaturas.
“Infiel” traz em si os fonemas de fel. A rima final do segundo quarteto (ás-
-compraz) é um achado semântico-sonoro, denunciando o ânimo belicoso do
anjo do Mal que com façanhas de guerra se compraz.
Os tercetos dizem, dentro de um período fortemente articulado, o essencial do combate. O arcanjo Miguel desce da transcendência para entrar na alma
do criador do mais puro dos cavaleiros. É São Miguel de la Mancha (assim nomeado, em castelhano), incorporado, por meio de um aposto, à sua inseparável
criatura, Dom Quixote.
O poeta irmana-se com outro grande poeta da Espanha, Garcia Lorca, na
sua visão do arcanjo figurada no Romancero Gitano (“Garcia Lorca viu-te, vejo-te
eu”). Um deslocamento temporal avizinha a luta de São Miguel com os feitos do
Quixote, “que arremete com lança em riste e archote” contra o “ás da negação”.
Na hora da vitória final, a identificação é explícita: “E ao fim de tudo há
um anjo que venceu: Tu, D. Quixote da Anunciação”.
Por um equívoco feliz, ou escolha voluntária, Jorge de Lima atribui ao
Arcanjo Miguel a missão de anunciar à Virgem Maria que ela dará a luz ao Messias, o que, no texto evangélico, é confiado ao Arcanjo Gabriel (Lucas, 1, 26).
De todo modo, o que importa é o gesto poético de fundir a imagem do anjo
lutador com a do Cavaleiro da Mancha, deixando implícito que se trata de combatentes fiéis, refratários à violência. De um lado, a serena nobreza de Miguel
que, segundo a Epístola de São Judas (1, 9), vence o Maligno, mas abstém-se de
injuriá-lo e infamá-lo (“finge una cólera dulce”, diz Lorca ao descobri-lo em um
altar cigano); de outro lado, a alma alevantada do Quixote, incapaz do mínimo
ato de egoísmo ou vilania, percorrendo o mundo para restaurar a justiça e o
respeito violados por inimigos ignóbeis.
Junto às fontes da lírica: a infância, a amada
Não só de visões transcendentes e do embate entre o Bem e o Mal extrai
Jorge de Lima a matéria-prima do Livro de sonetos. Sendo um poeta eminentemente lírico, a sua imaginação também desce ao próprio passado e, como nas
primeiras obras afetadas pelo modernismo regionalista, traz da infância motivos
condutores de mais de um poema.
Embora o Livro de Sonetos não se disponha em ordem narrativa ou temática, não deixa de ser digno de nota o fato de os sonetos da infância virem só no
último terço da série. Mas, quando chegam, é como se emergissem, um após
outro, jorrando do poço da memória prestes a transbordar. As figuras evocadas
passam a ter nome e história e o desejo de fixá-las modula-se ora em forma interrogativa (“Onde está o Marão?”), ora em torneios puramente narrativos: “/
Eu fui de lá. Minha avó era fiandeira. Ouvi romances./ Chorei Páscoas, nadei
por vários poços”; ora, enfim, com entoação exclamativa: “Ó meninos, ó noites,
ó sobrados!” Este último verso repete o final de outro soneto evocativo: Nas noites enluaradas cabeleiras
das moças debruçadas, dos sobrados
desciam como gatas borralheiras
por sobre os nossos lábios descuidados.
Talvez seja possível estender à criação poética o que a observação empírica
nos sugere em termos da insistente repetição com que figuras e cenas da infância acorrem à mente do adulto. No imaginário evocativo da meninice Jorge de
Lima alcança um alto nível de redundância. Palavras, frases, às vezes períodos
inteiros assinalam a presença obsessiva de seres que povoaram os seus primeiros
anos em Alagoas. De tudo faz o poeta matéria de poesia: noites enluaradas,
meninas e meninos no sobrado, o avô morto, a avó fiandeira, a draga na maré
baixa (“Lembras-te, meu irmão, da draga morta?”), o Marão, onde o menino
mourejou, a esfera armilar e o candeeiro antigo, os galos e o seu canto. Mas, de
repente, a névoa da memória...
Ao lado da nítida rememoração surge o encontro com o tempo roaz, irreversível. É o risco do esquecimento, a queda no vazio que assombra, quando
não apaga cada figura e cada cena vivida nos verdes anos. Neste soneto o desaparecimento do passado atinge não só a história familiar, mas também a dos nautas
e descobridores lusitanos, de onde o intertexto camoniano, que voltará em mais
de um passo da Invenção de Orfeu:
Virado para o Marão o avô morrido/ e o pai deste Nordeste sepultado./ Rio
Lima e Mundaú. O filho nado/ em limo e sal do mar sobrevivido.// Nem da
roda de fiar da avó, o ouvido/ conserva do som. Silêncio. O céu calado./Descobridor do oceano submergido,/ navegante do rio emparedado.// Sôbolos
rios e sôbolos oceanos,/ só uma sombra de nauta fragmentada/ no roteiro dos
mares lusitanos.//O restante é oceania naufragada:/cavernas de nau, âncoras e
gáveas./ Dessa vasa salobra a morte lave-as.
Enfim, o melos, a música da lírica amorosa, que nos sonetos é pouca, mas
intensa, pois testemunha o desejo sublimado de tornar presente a amada para
sempre ausente:
E esta angústia de te recompor, traço
a traço, tua boca dolorosa
(fonte que se exauriu), teu rosto escasso,
ó musa angelical, airosa rosa!
Quando li, pela primeira vez, os sonetos da amada ausente, figurada na
imagem enigmática da infanta defunta, veio-me à memória a poesia de amor,
igualmente sublimado, de Alphonsus de Guimaraens. O sentimento de fundo
é o mesmo, semelhante é a forma clássica dos decassílabos, idêntico o procedimento que evita a descrição precisa preferindo a “melodiosa dança” das aparências.