sábado, 25 de julho de 2009

DOIS MARCOS DA CRIATIVIDADE CINEMATOGRÁFICA BAIANA

Beto Magno

Os mais críticos diriam que a Bahia e o mundo, passados 40 ou 20 anos, continuam os mesmos. Razoável ou não, a afirmação se confirma em dois dos maiores filmes baianos, clássicos incontestáveis do cinema underground . Meteorango Kid - O Herói Intergalático (André Luiz Oliveira, 1969) e Superoutro (Edgar Navarro, 1989), realizados há respectivamente quatro e duas décadas, continuam muito atuais.

As duas fitas tratam dos dramas de dois personagens perdidos diante de suas épocas e ilusões, que se desfacelam à sua frente sob o aspecto de inadequação no mundo e os transformam em impecáveis anti-heróis. O louco vivido magistralmente por Bertrand Duarte e sua tentativa alucinada de compreensão do mundo que de aventura em desventura desemboca na tentativa de voar ; o alienado Lula, jovem de família burguesa que faz da sua inconsequência válvula de escape e contraponto à hipocrisia ao seu redor, finalizando com a metáfora da negação de sua pomposa festa surpresa de aniversário.

Desde o primeiro, o Brasil viveu uma ditadura militar, a juventude testou os limites dos costumes, a tecnologia saltou com sua força andróide. O óbvio seria pensar, ao imaginar um olhar que de fora observasse, que este encontraria uma outra sociedade e, alma dela, outros jovens, outros ideais. Ao assistir os dois filmes, porém, fica a lacuna: o que mudou desde então nos discursos, nas ações, nas brigas e anseios dos jovens? Não é uma pergunta fácil, mas é possível arriscar com grande chance de acerto

Pouca coisa mudou. Com o decréscimo, porém, que não há uma ditadura militar, como em 1969, e nem o fim dela, em 1989, amplificando os significados. De uma incipiente estética pop, estilizando o trash e bradando discursos em letreiros/outdoors, câmera inquieta, montagem rápida e som caótico, até mesmo tecnicamente os ideais parecem os mesmos. Mas eles fizeram há tanto tempo…
E o que dizer então da falta de recursos? Hoje, não sem certa razão, jovens cineastas usam a falta de apoio como desculpa para a falta de produção. Mas e a falta de criatividade? E o peito para ser marginal e vencer a barreira do dinheiro? E a criatividade não seria a forma mais eficiente e original de vencer essas limitações?
Não se vê hoje, no cinema baiano, filmes que tenham potência e fôlego para serem lembrados daqui a 40 ou 20 anos além do retrato estático de uma época, e nem vale a pena falar deles, basta conferir com seus próprios olhos. Superoutro e Meteorango Kid, ao contrário, continuam em movimento, assim como os Novos Baianos, parte da trilha de Meteorango (com músicas de Morais Moreira e Paulinho Boca de Cantor) e toda a música e cultura tropicalista, revisitada com afinco pela juventude atual.

Talvez porque pouca coisa tenha mudado realmente. Hoje não se produz nada tão forte, e a molecada tinha mesmo bala na agulha e coragem de ser marginal, outsider, rebelde. Coragem de peitar os seus tempos e incongruências.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

A EVOLUÇÃO DA LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA

BETO MAGNO E VITÓRIA MAGNO

Da câmara fixa, parada, dos tempos dos Irmãos Lumiére e de George Méliés, passando pela sistematização da linguagem cinematográfica com David Wark Griffith (O nascimento de uma nação, 1914, Intolerância, 1916), o cinema, que completou o seu centenário em 1995, sofreu, na sua trajetória, várias transformações em seu estatuto da narração. Do reinado da arte muda, quando se pensou o cinema ter alcançado a sua essência como linguagem, passando pela introdução do som - que, inegavelmente, modificou a arte do filme, a linguagem cinematográfica recebeu, na sua trajetória, influências da tecnologia, incorporando seus avanços. As inovações tecnológicas favoreceram a ruptura dos esquemas tradicionais (produtivos e expressivos) e a difusão de usos do cinema que, anteriormente, tinham sidos feitos só em caráter excepcional (as vanguardas históricas e certos momentos heróicos do neorrealismo).Incorporando os avanços tecnológicos, o cinema conseguiu sair da supremacia da montagem para a profundidade de campo - a invenção das objetivas com foco curto permitiram a um Welles a ousadia de uma renovação estética em Cidadão Kane, ponto de partida da linguagem do cinema moderno. A profundidade de campo permitiu a utilização de filmagens contínuas sem a excessiva fragmentação da montagem anterior. Com a profundidade de campo,anuncia-se, uma década depois, a eclosão do modelo de Michelangelo Antonioni que, com sua trilogia A aventura - A noite - O eclipse deu ao cinema uma nova maneira de pensar e um estilo de representar.

O fracionamento deu lugar a demoradas incursões da câmera dentro da tomada, permitindo, com isso, maior poder de captar a alma humana nos seus devaneios e nas suas angústias como, também, com Roberto Rossellini, assaltar com a câmera o momento histórico, o instante real. A instalação da película pancromática (aquela dotada de maior sensibilidade) e a difusão de câmeras mais fáceis de manobrar mudaram a face do cinema e foram fatores que contribuíram para o advento do chamado cinema moderno. A câmera na mão, que veio a facilitar a apreensão da realidade, surgindo o cinema-verité, é uma conseqüência da tecnologia. A película pancromática, por mais sensível, fez com que os realizadores saíssem dos estúdios fechados e se intrometessem, com suas câmeras, nos exteriores mais recônditos, descobrindo, com isso, um cinema mais verdadeiro porque menos artificial. A tecnologia determinou uma evolução da linguagem cinematográfica?
Evidentemente que a tecnologia determina uma transformação da linguagem cinematográfica, ainda que não venha a provocar a revolução estética que se verificou quando da passagem do cinema mudo para o sonoro. A tecnologia encontra-se , por exemplo, hoje, tão evoluida, que provoca no espectador uma impressão de realidade antes impossível de ser verificada (os dinossauros de verdade dos filmes de Spielberg: O parque dos dinossauros e O mundo perdido). Tem-se a estética cinematográfica quando a técnica se conjuga com a linguagem , instaurando-se, aí, o ato criador.

Se o cinema nasceu em 28 de dezembro de 1895, com a projeção pública do cinematógrafo efetuada pelos Irmãos Lumiére, a linguagem cinematográfica somente veio a se consolidar, no entanto, vinte anos depois, em 1914/15 com O Nascimento de uma nação (The birth of a nation), de David Wark Griffith. Entre o seu nascimento e a consolidação de sua linguagem, o cinema passou por uma série de de gradações evolutivas, com o descobrimento, aos poucos,dos elementos determinantes de sua especificidade como linguagem sem língua. Um cinegrafista de Lumiére, Promio, andando numa gôndola em Viena, e observando o casario, inventou o travelling. Griffith em alguns curtas da Biograph ofereceu a expressão definitiva ao close-up. Edwin S. Porter, com sua narrativa ainda balbuciante, tenta a montagem e o enquanto isso que viria a desencadear um elo importante para a construção da linguagem cinematográfica.

O fato é que a linguagem fílmica nasce a partir do momento em que se constatou que a câmera podia sair do lugar, que podia se movimentar, mover-se, dando origem, com isso, à mudança do ângulo visual. Outra conquista importante veio com a constatação pelos ingleses da escola de Brighton de que, para contar uma história, é preciso inserir um primeiro plano, um close-up, dentro de um plano geral, nascendo, com isso, a montagem. O grande sistematizador, porém, é David Wark Griffith, o pai da linguagem cinematográfica sem a qual, aliás, o cinema não existiria como é hoje praticado.

O próprio Serguei Eisenstein deve muito a Griffith. Este, no frigir dos ovos, é muito mais importante do que o soviético, pois o grande criador, o inventor genial, o sistematizador preciso. Esta descontinuidade real do cinema e que se transforma numa impressão de continuidade, de fluxo contínuo, é resultado de uma abstração inconsciente da linguagem cinematográfica pelo espectador. Este, acostumado aos filmes, absorve os seus truques de linguagem, contando que esta não fuja da padronização à qual está acostumado. O que significa dizer: se, antes, para fazer que o público compreendesse que um personagem estava se lembrando do passado era preciso a utilização de fumacinhas e de diversos artifícios - nunca o corte direto presente/passado como num flash-back moderno, o cinema da contemporaneidade abdica de qualquer artifício no sentido explicativo.

Os lances de memória que tornaram incompreensível O ano passado em Marienbad (1961), de Alain Resnais, hoje estão sendo utilizados na publicidade televisiva. O puzzle proposto por Welles em Cidadão Kane é perfeitamente identificável em fitas desta suposta pós-modernidade.
Conta-se, entretanto, o caso de uma moça da Sibéria que, em visita a Moscou, julgou horrível o primeiro filme (uma comédia) que tinha visto em sua vida, porque "seres humanos eram despedaçados, as cabeças jogadas para um lado, os corpos para outro". Equando Griffith mostrou os primeiros close-ups em um cinema, e uma imensa cabeça decapitada sorriu para o público, houve pânico na platéia. Aliás, quando da primeira projeção do cinematógrafo dos Lumiére, em 1895, um trem que se dirigia à câmera determinou que algumas pessoas, ainda que a pequenez da tela, o preto-e-branco nem tão real assim, se escondessem assustadíssimas, debaixo das cadeiras - com medo de o trem sair da tela e esmagá-las. Em dois filmes de 1948, Laurence Olivier (Hamlet) e Alfred Hitchcock (Festim diabólico/Rope) eliminam o corte, substituindo a descontinuidade das imagens por uma circulação incessante da câmera, que soluciona a velha contradição entre cinema e teatro. Em Crises d'alma(Cronaca de un amore), Michelangelo Antonioni também renova a estrutura fílmica pela valorização da construção formal pelo movimento no interior de longas sequências e não mais pelo movimento de plano a plano.

Glauber Rocha também valoriza a construção formal pelo movimento no interior de longas sequências, ainda que Terra em transe seja filme de montagem sincopada, de planos curtos, com influência clara do cinema investigativo de Welles. A maioria dos filmes de Glauber Rocha, no entanto, revela um predomínio do plano-sequência - ao invés de ser dividida em cenas e diversos planos é feita numa única tomada. Isso levou Marcel Martin, ensaísta francês, a pensar numa transformação do cinema contemporâneo, transformação que começou com a desdramatização praticada por Michelangelo Antonioni, nos anos 50, e o aparecimento da câmera móvel que possibilitou o cinema-verité.

Segundo o grande Marcel Martin em seu fundamental A linguagem cinematográfica (Brasiliense, 1990): "O cineasta tende cada vez menos a decupar seu filme demaneira a destacar uma série unilinear e inequívoca de acontecimentos; já não sublinha por meio de montagem ou de movimentos de câmera aquilo sobre o que ele deseja fixar a atenção do espectador; a câmera não desempenha mais o seu papel habitual de nos dar o ponto de vista de uma testemunha virtual e privilegiada sobre todos os acontecimentos, facilitando, assim, o trabalho perceptivo e estimulando a preguiça intelectual do espectador (...) O abandono da linguagem concebida como conjunto de procedimentos de escrita ligados à técnica, tal como era praticada por Eisenstein ou Welles, é, portanto, acompanhada de uma rejeição do espetáculo, noção ligada à da direção (...) Passamos a um outro plano: o cinema de roteiristas cede espaço ao cinema de cineastas. O cinema não mais consiste essencialmente em contar uma história por meio de imagens, como outros o fazem por meio de palavras ou notas musicais: consiste na necessidade insubstituível da imagem, na preponderância absoluta da especificidade visual do filme sobre seu caráter de veículo intelectual ou literário.

Nos filmes decididamente "modernos", o espectador não mais tem a impressão de estar assistindo a um espetáculo inteiramente preparado, mas de estar sendo acolhido na intimidade do cineasta, de estar participando com ele da criação: diante desses rostos quese oferecem, desses personagens disponíveis, desses acontecimentos em plena constituição, desses pontos de interrogação dramáticos, o espectador conhece a angústia criadora."

Tempo e diegese
O paradoxo do tempo, segundo a Filosofia, reside na existência de dois passados: o passado que desapareceu e o passado que permanece como parte integrante do presente, gravado na memória e essencialmente criador. O passado que se encontra em cada um - qual uma madeleine a esperar a busca do tempo perdido. Tal paradoxo ganhou, no cinema, aspectos mais radicais. Nele, a noção de tempo é extremamente ambígua, porque não existe um único tempo, mas vários tempos mantendo entre si relações estreitas, e que só podem ser separados por uma operação do espírito.Distinguem-se, no filme: o tempo real (ou o tempo físico: duração cronométrica da projeção); o tempo psicológico (duração subjetiva da fábula narrada: um dia, meses, anos); e o tempo dramático (ou narrativo: tempo verbal em que transcorre a história/fábula: presente, passado ou futuro).Objetivamente, a rigor, o filme é um tributário do passado, mas de um passado que se refaz cada vez que o filme é projetado na tela. Mesmo que sua ação decorra no presente só existiu, esta ação, de fato, durante a filmagem, daí a aparente falsidade do presente cinematográfico, um presente virtual que, na realidade, é um passado.

Em 2001, Uma odisséia no espaço (2001: A space odyssey, 1968), de Stanley Kubrick, há, por meio de um corte direto, a passagem de milhares de anos, quando um grande macaco, levantando-se, joga, com força, um enorme osso para o ar e este osso, no corte, transforma-se numa nave espacial. Se a projeção de A família (La famiglia, 1987), de Ettore Scola, dura pouco mais de 130 minutos, seu tempo real, físico, o seu tempo dramático, narrativo, no entanto, compreende mais de 80 anos na vidade um velho senhor que, na Itália, constituiu grande família.Para estudar melhor o assunto, a filmologia - nova ciência que estuda a influência do filme sobre o espectador e estabelece as bases psicológicas que o aproximam ou afastam da ação desenrolada na tela - criou o termo diegese. A diegese refere-se a tudo que pertence, no processo intelectivo, à história contada no filme, ao mundo fabulístico sugerido ou pretendido pela ficçãocinematográfica. A diegese, portanto, abarca o mundo ficcional apresentado pelo filme e tudo o que esse mundo implica, se fosse tomado como verdadeiro.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

PAU BRASIL UM FILME DE FERNANDO BELENS




Mais um filme genuinamente baiano já está pronto e será exibido em avant-première no próximo dia 31 de julho no Teatro Castro Alves dentro da programação do Seminário de Cinema e Audiovisual (Semcine), às 20 horas e 30 minutos (em ponto?). Trata-se de Pau Brasil, de Fernando Belens, que ganhou um edital patrocinado pelo Governo do Estado, mas que tem também capital alemão na produção. Baseado em livro homônimo de Dinorah do Valle, premiado em concurso cubano da Casa de las Americas, Pau Brasil sofreu alguns contratempos quando do início de sua realização por causa de verbas que foram desviadas, mas encontrou apoio em Peter Przegodda, montador alemão de vários filmes de Win Wenders, que, com sua produtora, decidiu ajudar Belens. Przegodda é velho conhecido da Bahia, desde os tempos em que aqui esteve para dar um curso de cinema no já longíquo ano de 1976 (há, portanto, 33 anos).

Fernando Belens, conheço-o desde priscas eras, quando, ainda estudante de Medicina (é dublê de cineasta e psiquiatra), apresentava suas experiências radicais em Super 8 nas jornadas baianas. Sempre se caracterizou, desde as fitinhas desta bitola, por um humor insólito e uma estética inconformista. Do Super 8 passou para o 16mm e, como consequência, o 35mm e, agora, neste Pau Brasil, realiza o seu primeiro longa-metragem. Lembro-me bem do poético Anil, Heteros, a comédia (a intolerância heterossexual na história de um mestre que se transmuta em mulher), Pixaim (sobre os salões de beleza no Pelô e as transformações ocorridas no look das mulheres com o passar do tempo), Europa, França e Bahia, todas as experiências, e aquela do papagaio dilacerado, entre outros filmes de sua já extensa quilometragem pelo cinema baiano.

O roteiro, gestado desde 1987, só ficou pronto, segundo Belens, dois meses antes das filmagens. E trata de duas famílias, a de Joaquim e de Nives, que coexistem num pequeno povoado, perdido no coração do país, chamado Pau Brasil. Elas vivem frente a frente, com modos diferentes de ver a vida.“Numa casa mora uma mulher (personagem representada por Fernanda Paquelet) que transa com todos os caminhoneiros e tem um marido que é o marceneiro (Bertrand Duarte). Eles se gostam e esse amor, que ela tem demais e pode dar a outras pessoas, não é impedimento para o amor deles. Isso gera uma grande reação na outra família, que tem um pai falso moralista, que de noite assedia as filhas sexualmente”, relata Belens.

Para arrematar, os personagens são cercados por uma bruxa, “uma maga que transita nos enterros, nos velórios, na natureza... E são esses microplots (pequenas células narrativas) não conclusos e partidos para outros que, no final, deixam as coisas em aberto”.Sem época definida, o filme não segue a estrutura narrativa tradicional, de conflitos que se criam e se resolvem no decorrer da história.“São fragmentos de história. O filme transita por semicírculos, perguntas que não são respondidas, expectativas frustradas... É uma obra que pede a participação do espectador, para que complemente algumas coisas que, intencionalmente, foram deixadas em suspenso”.