quarta-feira, 16 de outubro de 2019

BACURAU


A colônia se rebela


Como é estranho o filme proposto por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles! Talvez descrever uma produção como “estranha” soe um tanto superficial, mas o adjetivo se encaixa ao projeto no sentido mais estrito do termo: Bacurau está o tempo todo se transformando, apontando novos caminhos, rompendo com expectativas e ressignificando as imagens mostradas anteriormente. Ao espectador, cabe acompanhar a narrativa como quem tateia um caminho às escuras: aos poucos, sem certezas, aberto às inevitáveis surpresas que virão. Esta não é uma dessas produções que busca agradar o espectador a todo custo: ela se move por um caminho peculiar, ciente de sua heterogeneidade, deixando ao público a tarefa de acatar, ou não, as subversões propostas.

Tendo isso em mente, vale dizer que este texto busca preservar as diversas surpresas da trama. Mesmo assim, alguns elementos podem ser adiantados: primeiro, não existe um protagonista único – a não ser que a cidade inteira seja encaixada nesta categoria. Cerca de vinte personagens tomam a cena, desempenhando papéis muito específicos, apenas para ceder espaço a outros na cena seguinte. Talvez se termine a sessão sem lembrar o nome da maioria destes habitantes, mas pouco importa: o essencial se encontra na função que ocupam. Por isso, a identificação do espectador se dará menos com a jornada de um herói do que com uma situação sociopolítica precisa.




Além disso, Bacurau demora bastante a esclarecer seus conflitos principais. Nos trabalhos anteriores como diretor, Kleber Mendonça Filho propunha narrativas segmentadas em três partes. Desta vez, embora não haja divisão formal com letreiros em tela, ainda se constata uma divisão muito precisa em três atos. O primeiro deles corresponde ao realismo social, onde os diversos moradores de Bacurau são apresentados ao público. Conhecemos o professor, a médica, a prostituta, o guerrilheiro, o político corrupto. Este segmento se desenvolve em ritmo contemplativo, mais próximo ao psicologismo dos romances literários do que à média dos roteiros cinematográficos.

Em paralelo, a estética foge ao que seria considerado “polido” para uma grande obra do circuito de festivais: a imagem é saturada demais, contrastada em excesso, enquanto a fotografia permite cenas superexpostas do sertão nordestino e a montagem aposta em recursos de transição incomuns, para não dizer anacrônicos. O espectador pode levar cerca de uma hora se questionando onde de fato a trama pretende chegar, até que o roteiro comece a fornecer suas primeiras resoluções e completar a leitura dos estranhos símbolos propostos. Em outras palavras, os diretores não facilitam a vida do espectador médio, propondo uma longa introdução hermética antes de mergulhar nos prazeres das produções B.

Assim, o segundo ato se consagra a um estilo de cinema bastante americano. A narrativa muda por completo – não apenas a língua majoritária, mas também o ritmo, o estilo de atuações e a relação com o humor. Se na primeira parte a comicidade provinha de uma relação orgânica com regionalismos e sugestões de suspense, nesta parte o espectador pode se julgar dentro de uma produção trash norte-americana, com atuações exageradas, planos maquiavélicos e soluções gratuitas. Estas escolhas podem ser interpretadas como uma bela paródia do cinema de gênero, ou então como uma condução artificial por parte dos diretores, dependendo do grau de consciência e controle que se atribua à dupla.




Bacurau chega, enfim, ao seu terceiro e melhor ato. O filme se transforma novamente, para não apenas unir as duas esferas em termos de estilo (cinema naturalista e cinema de gênero) mas também em formas de discurso. Temos então os americanos contra os brasileiros, a lógica do sertão brasileiro contra o ponto de vista dos snipers gringos, a cidade enquanto lugar de convivência ou espaço de apropriação. O roteiro une todas as suas pontas soltas, ressignifica elementos (o estranho produto colocado na boca, os caixões) e se livra à catarse prometida tacitamente desde as primeiras imagens. Por mais premonitórias que fossem as cenas iniciais – vide o olhar externo, chegando de fora da Terra, enquanto Gal Costa canta uma “canção de amor para gravar num disco voador” -, elas só se completam realmente neste segmento final. Os diretores parecem então mais desenvoltos, mais assertivos, propondo uma estética do gozo (político e sexual) após a longa exposição conceitual.

Por esta razão, vale a pena enfrentar o trajeto árido do filme para descobrir onde desemboca tamanho contorcionismo narrativo. Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles constroem uma curiosa fábula social sobre uma cidade que desaparece, uma cidade tomada por inesperados inimigos munidos de arrogância e um curioso senso de propriedade privada. “Nada justifica melhor a condição burguesa do que acreditar que se merece ocupá-la”, afirmavam os sociólogos Pinçon, num raciocínio bem exemplificado pela trama. Enquanto isso, os moradores de Bacurau vivem numa comunidade solidária, horizontal e progressista, tendo aprendido a desaparecer quando necessário, a transformar sua invisibilidade em força e estratégia, desde o encontro com o prefeito até as cenas finais.

A relação deste conto com o cenário brasileiro se faz ao mesmo tempo metafórica e evidente: nos tempos em que se questiona com frequência porque o povo brasileiro tem aceitado calado tamanha opressão, sem se unir e se revoltar, o filme propõe uma revolução simbólica da classe trabalhadora contra as classes dominantes, uma revanche histórica dos brasileiros contra o colonizador. “Se alguém tem que morrer, que seja para melhorar”, afirma a canção final, sustentando o preceito revolucionário segundo o qual, para se construir algo, é preciso destruir o sistema preexistente. A incitação à revolta pode ser apenas alegórica, ou então concreta, de acordo com o ponto de vista. Mesmo assim, a ideia está lá, clara até demais.

PS: Ao invés de organizar um protesto político no tapete vermelho do Festival de Cannes, como tinha feito alguns anos anteriormente com Aquarius, Kleber Mendonça Filho, Juliano Dornelles e sua equipe deixaram que a obra se tornasse um discurso por si própria. E acrescentaram, nos letreiros finais, que este projeto gerou mais de 800 empregos, movendo a indústria nacional. Isso serve de aviso cristalino àqueles que não enxergam o empenho nem o valor (cultural e econômico) do cinema nacional.



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