domingo, 19 de março de 2017

"TERRA EM TRANSE": BUSTO ROUBADO DE GLAUBER ROCHA É MONUMENTO Á MYZERYA DO PAYZ


Por James Martins
Prólogo
“Terra em Transe”, o filme de Glauber Rocha que completa 50 anos em 2017, já foi avaliado sob diversos prismas. Um dos elogios mais eloquentes, o de Nelson Rodrigues, talvez nem seja de fato (ou apenas) um elogio: “Nós estávamos cegos, surdos e mudos para o óbvio. Terra em Transe era o Brasil. Aqueles sujeitos retorcidos em danações hediondas somos nós. Queríamos ver uma mesa bem posta, com tudo nos seus lugares, pratos, talheres e uma impressão de Manchete. Pois Glauber nos deu um vômito triunfal. Os Sertões de Euclides da Cunha também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte para ter sentido no Brasil precisa ser essa golfada hedionda”.
Cena I
Em 2003, o então prefeito de Salvador, Antônio Imbassahy, inaugura um busto de Glauber Rocha, obra de Nanci Novais, no início da rua que leva o nome do cineasta, na Baixa de Quintas. Era parte de um projeto urbanístico que reformou praças -incluindo pedras de granito-, instalou uma fonte luminosa na Praça da Sé, inaugurou o novo Parque do Abaeté… Enfim, um projeto que, não obstante a importância, recebeu também muitas críticas de que teria apenas enfeitado a cidade.

Um ano depois, em 2004, mesmo como o prefeito melhor avaliado do país, Imbassahy não consegue eleger o sucessor. Entra João Henrique, em uma aliança de centro-esquerda que infligiu a primeira derrota ao carlismo em um longo período. E, oito anos depois, a cidade praticamente destruída (ruas escuras, praias sujas e praças cariadas que só não caíram totalmente graças ao mesmo granito) elege ACM Neto – que inicia uma série de intervenções na capital, tão elogiadas quanto criticadas em termos semelhantes aos dirigidos a Imbassahy.
Cena II
No início de 2015 o busto de Glauber é roubado. Provavelmente por usuários de crack, os famosos sacizeiros. “Aqui tem mais de 300 mil sacizeiros. A essa altura ele já foi ó… [gesticula como se portasse um maçarico] todo fumado”, diz Alex, profissional da limpeza municipal, ao bahia.ba, enquanto faz a manutenção do gramado na Avenida Barros Reis, próximo ao pedestal d’onde o busto foi extraído. Sacizeiros passam por perto. E moradores de rua empurrando carrinhos de supermercado. A grama está bem aparadinha. Manhã. Nublado.

Excerto de Eztetyka da Fome (1965)
“Personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras: foi esta galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo tão condenado pelo Governo, pela crítica a serviço dos interesses antinacionais pelos produtores e pelo público – este último não suportando as imagens da própria miséria”.

Foto: Mateus Soares/bahia.ba
Patrick, morador da área, lamenta ações de vandalismo…
Foto: Mateus Soares/bahia.ba
…e Alex, funcionário da limpeza municipal, não conhece Glauber Rocha (Fotos: Mateus Soares/bahia.ba)

Cena III
“Glauber Rocha? Na verdade não sei quem é não”, Alex, funcionário da limpeza municipal. Já citado. “Rapaz, tem mais de 10 anos que eu não vou [ao cinema]”.

“Não sei”, Camila, funcionária da loja de polpa de frutas União, que fica em frente ao ex-busto, respondendo quem é Glauber Rocha.
“Tem a ver com cinema, né?”, Toinho, baleiro.
“Eu moro aqui na região há uns 32 anos. Essa rua não existia, é nova. Isso aí deve ter sido usuário de droga, sabe como é né? Ou então só por maldade mesmo, que ser humano tem é arte. Veja que tá tudo pichado, destruído. Eu sei que ele trabalhava com cinema. Tem até um cinema com o nome dele, lá no Centro. É capaz de já ter visto algum filme, mas não lembro”, Patrick, funcionário de condomínio.
Cena IV
“Dois filmes de Glauber Rocha que provocaram rupturas, divisores de águas, no cinema brasileiro: DEUS O DIABO NA TERRA DO SOL, com a sua estética da fome, um marco do movimento Cinema Novo e TERRA EM TRANSE, com a sua estética do sonho, o epicentro que sacudiu a intelligentsia brasileira, influenciando toda uma geração. Pela sua concretude, este filme foi uma peça essencial para alicerçar e fundamentar o teatro de José Celso Martinez Corrêa e o movimento Tropicalista. Uma ópera atonal surrealista barroca, cujo libreto aborda o sentimento de brasilidade do poeta Paulo Martins, que fica dividido entre o populismo e a direita reacionária. Um país dominado por uma elite retrógrada que até hoje está no poder. Uma obra prima de vanguarda que permanece atual. Não só do ponto de vista estético, como também, pelo seu conteúdo, pela sua dramaturgia e pelos seus protagonistas, que são as mesmas peças que estão no xadrez político do Brasil contemporâneo”.

[José Walter Lima, cineasta, autor de “Rogério Duarte, o Tropikaoslista” (2016)]
Cena V
A redação do bahia.ba conversa com a Fundação Gregório de Matos, responsável pelos bustos da cidade. Telefone: “Fundação Gregório de Matos, bom dia”. “Bom dia, aqui é James Martins”. “Paulo Martins?”. “James. Eu quero saber do busto de Glauber Rocha, que foi roubado em 2015, se tem alguma previsão de retorno”. “Olha, na verdade nós temos um problema de orçamento, que é limitado, anual. E Glauber é prioridade, mas, sinceramente, não temos uma previsão a dar. Vários bustos e monumentos foram roubados ou danificados, Mestre Bimba, Nossa Senhora da Conceição, Castelo Branco… é complicado, só quem tá aqui na cadeira é que sabe! Infelizmente o vandalismo é uma realidade, usuários de drogas, tudo isso. E o país vive um momento difícil, não é?, de contingenciamento. Não pense que não temos sensibilidade, nós temos, queremos resolver esse problema, devolver o busto ao seu devido lugar, mas não é tão simples, ainda mais com as burocracias, licitação etc”.

Dados
Salvador tem aproximadamente 20 mil moradores de rua, segundo informações do Projeto Axé.
40% deles usam álcool ou crack, segundo a prefeitura.

Cena VI
“O tamanho da pedra varia a depender do dinheiro que eu tiver. Uns 10 reais já dá pra uma jadezinha razoável. Dá pra dar uma tapinha. Menos que isso só farelo de cinco conto. Tudo aumentou né? Tem gente que fuma na lata, outros no cachimbo. O cachimbo é melhor, mas se a polícia te pegar é barril. A lata dá pra reciclar, vender, é retornável (risos)”, diz A.L., usuário que oscila entre a rua e a casa da família.

“O crack já foi droga de miserável. Hoje em dia a classe-média absorveu. O ideal é comprar 5 gramas por $100 – com metade você faz um dinheiro: 17 pedras de 10 reais. É o lado empreendedor (risos). Tem gente que faz a pedra da própria cocaína, que fica mais forte”, P.S., ex-usuário, também em conversa com a reportagem.
Close-Up

“ESSA GOLFADA HEDIONDA”

Excerto de Eztetyka da Fome (1965)
“A mais nobre manifestação cultural da fome é a violência”.

Cena VII
Em 31 de agosto de 2016 o Senado aprovou o impeachment da Presidente da República, Dilma Rousseff (PT), por 61 votos contra 20. Ela foi condenada sob a acusação de ter cometido crimes de responsabilidade fiscal (“pedaladas fiscais”) no Plano Safra e os decretos que geraram gastos sem autorização do Congresso Nacional. Às 16 horas do mesmo dia, o vice Michel Temer (PMDB) tomou posse.

Sinopse
“Na República de Eldorado, Paulo Martins é um jornalista idealista e poeta ligado ao político conservador em ascensão e tecnocrata Porfírio Diaz e à amante dele, a meretriz Silvia, com quem também mantém um caso formando um triângulo amoroso. Quando Diaz se elege senador, Paulo se afasta e vai para a província de Alecrim, onde conhece a ativista Sara. Juntos eles resolvem apoiar o vereador populista Felipe Vieira para governador na tentativa de lançarem um novo líder político, supostamente progressista, que guie a mudança da situação de miséria e injustiça que assola o país. Ao ganhar a eleição, Vieira se mostra fraco e controlado pelas forças econômicas locais que o financiaram e não faz nada para mudar a situação social, o que leva Paulo, desiludido, a abandonar Sara e retornar à capital e voltar a se encontrar com Sílvia”.

The And
Por mais que especulemos, é impossível saber qual seria a posição política de Glauber Rocha hoje. Sem poder ser considerado um conservador de direita, sua relação com as diretrizes de esquerda tampouco foram consoantes. Em 1977 (nos 10 anos de “Terra em Transe”), elogiou o presidente militar Ernesto Geisel. Antes, já tinha chamado o General Golbery de “gênio da raça”. Na Bahia, manteve relações cordiais com Antônio Carlos Magalhães. E todos o odiavam. E todos o amam. E o Brasil parece que não se cansa de parodiar “Terra em Transe”.

Sua ambição política era tanta que ultrapassava a política e por isso se opunha a ambos os lados da mediocridade. Assim como o seu cinema se opôs tanto às boas-maneiras da Vera Cruz quanto às barbaridades das chanchadas. Um outro Brasil – acima e além das praças limpinhas, das inaugurações de bustos e placas, mas também sem recorrer ao charme tardo-burguês que rejeita soluções práticas e asseio em nome da suposta autenticidade de paredes caindo aos pedaços em sobrados coloniais. Encarar a miséria sem folclorizá-la é uma das muitas lições do artista.
De um certo ponto de vista, o busto roubado de Glauber Rocha é a melhor homenagem que ele podia receber. Deveria ser reinaugurado assim, só a pedra. É também a prova da lentidão e da myzerya de um país que ainda é uma cópia do filme que ele lançou há 50 anos. Não deixa de ser irônico que cenas de “Terra em Transe” ironizando manifestações político-populares sejam usadas hoje para convocar manifestações político-populares. Mas também é óbvio que tais cenas servem muito bem a esse fim. O busto de bronze derretido parece cantar, onde quer que esteja: “Derreta esquadrão de ouro / É bom no samba, é bom no couro”, dando razão a um engano auditivo comum.
“Terra em Transe” continua sendo essa golfada hedionda, vômito triunfal de um país que está em nossas mãos e não adianta lavar. Um filme que, como sua personagem principal que é também uma encarnação de seu autor, almeja nada menos que o absoluto. Roubaram o busto de Glauber Rocha no início da rua que lhe dá nome para mostrar que ele continua sendo muito mais uma rua, uma via, que um busto, um monumento. Que ele continua móvel e imprevisível. Andando, como um sacizeiro, pra cima e pra baixo. “Rocha que voa”, assim batizou Eryk Rocha o filme que fez sobre o pai. Ele ainda diz: “Eu assumo os riscos. Precisamos resistir… e eu preciso cantaAAr”.

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