quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

REFORMA DA LEI ROUANET

Reportagem de Cadão Volpato e João Bernardo Caldeira, publicada no jornal Valor do dia
11/08

A gente não quer só comida
Governo defende maior participação do Estado na cultura e elabora proposta de reforma na lei de incentivo.

A Lei Rouanet na berlinda

Se um artista do calibre de Cildo Meireles, consagrado como um dos grandes nomes da arte contemporânea mundial, batesse à porta do departamento de marketing de uma empresa em busca de patrocínio para uma obra de arte que usa picolés de água como elementos catalisadores, qual seria a resposta do interlocutor? Provavelmente, seria uma bela negativa. Cildo, que está com uma elogiada retrospectiva em cartaz na Tate Modern de Londres, não teve de passar por isso. Convidado pelo Itaú Cultural para a mostra “Futuro Presente”, inaugurada no ano passado, ele apresentou essa idéia - que, entre outros possíveis significados, comenta a escassez de água no mundo nas próximas duas décadas - e recebeu R$ 300 mil para executá-la.

Para o superintendente de atividades culturais do Itaú Cultural, Eduardo Saron, a obra de Cildo teve a virtude de produzir uma reflexão sobre o tema (o futuro) e agregar valor à marca do banco e do instituto. “A pessoa pedia um sorvete no carrinho [eram dez espalhados pela cidade] e o sorveteiro explicava: ‘Isto é uma obra de arte, os desdobramentos dela estão no instituto.’ Muita gente que nunca havia entrado no prédio da avenida Paulista, onde fica o Itaú Cultural, apareceu”, afirma.

Essa compreensão do alcance da arte contemporânea não é a mais comum entre os patrocinadores de cultura no Brasil. Na maioria das vezes, os departamentos de marketing e de comunicação decidem pelo mais óbvio e o mais fácil, isto é, a obra de arte que não oferece muitos riscos quando agregada ao nome da empresa. “Agregar valor à marca” é apenas uma das vantagens que os mecenas empresariais têm hoje no Brasil. Lançando mão das leis de incentivo, as companhias conquistam prestígio entre o público, em grande parte das vezes, usando recursos do Estado obtidos via renúncia fiscal. Hoje, esse mecanismo representa 80% do montante investido pelo Ministério da Cultura (MinC).

Mas a Lei Rouanet, principal fonte de recursos para a cultura do país, está na berlinda. E com discussões alimentadas pelo próprio MinC. O ministro Juca Ferreira tem realizado encontros em diversas capitais para debater alterações na legislação e em seu principal mecanismo de incentivo, criado pelo governo Fernando Collor em 1991. O objetivo é delinear uma proposta de projeto de lei a ser enviada ao Congresso no início do ano parlamentar, em fevereiro. A proposta do Executivo envolve ainda as pastas da Fazenda, do Planejamento e a Casa Civil.

De acordo com a avaliação do ministério, a Lei Rouanet fracassou no objetivo de trazer a almejada auto-sustentabilidade para o setor, que se tornou dependente da renúncia fiscal como se fosse o único instrumento capaz de viabilizar as atividades culturais. Os produtores teriam se acomodado com o patrocínio e deixado de buscar retorno financeiro. Os empresários teriam se habituado com a idéia de que investir em cultura pressupõe apenas o uso de recursos públicos, sem precisar investir do próprio bolso.

Ferreira, que discutiu o tema em São Paulo na quarta-feira, diz que a Lei Rouanet é uma importante fonte de recursos para a cultura, mas ele ressalta sua insuficiência para configurar uma política pública e para os desafios da diversidade e da riqueza cultural do país. “Só no Brasil o mecenato é pegar dinheiro do Estado para fazer filantropia cultural”, afirmou num encontro em Salvador. Documentos do Minc indicam que 3% dos proponentes de projetos culturais beneficiados pela Lei Rouanet captam cerca de 50% dos recursos.

Para Yacoff Sarkovas, especialista em atitudes de marca e presidente da Significa e da Articultura, a dedução fiscal é, de fato, um meio “irracional, perdulário e ineficiente de investimento público, pois transfere recursos do Estado para a área cultural sem nenhuma estratégia de política pública”.

No ano passado, as leis de incentivo canalizaram R$ 1 bilhão para atividades culturais. A previsão para este ano é chegar a R$ 1,4 bilhão. Segundo Roberto Nascimento, secretário de Incentivo e Fomento à Cultura do MinC, a proporção de investimentos culturais feitos por meio de renúncia fiscal é demasiada e inadequada. Isso porque, do seu ponto de vista, esse peso implica um direcionamento financeiro feito pelos patrocinadores, “o que obviamente não atende plenamente às necessidades da sociedade”, diz Nascimento.

Nascimento considera que o ideal seria que o MinC tivesse mecanismos mais equilibrados. “Queremos aperfeiçoar os mecanismos atuais, incorporar novos instrumentos e fortalecer o próprio orçamento do MinC”, afirma. Neste ano, a pasta recebeu 0,61% do orçamento federal, um número que deve chegar a 0,7% em 2009, se não houver um comprometimento maior por causa da crise financeira. A meta é ampliar para 1%, conforme recomendação da Unesco.

Caso a nova proposta seja aprovada, atividades pouco atraentes para o empresariado terão oportunidades com a estruturação dos fundos setoriais (instrumentos de financiamento de projetos usados em outras áreas como saúde e educação), que corrigiriam disparidades. O Fundo Nacional de Cultura deve ser o principal mecanismo de financiamento da política pública.

Que a lei de incentivo fiscal não funciona plenamente não resta nenhuma dúvida. Do MinC aos artistas, passando por alguns produtores culturais e pelos patrocinadores, todo mundo enxerga maiores ou menores defeitos nela. O que alguns deles admitem é que, sem ela, não daria para ficar.



“A lei precisa passar por um aperfeiçoamento. Não acho que esteja errada”, diz Saron, do Itaú Cultural. “Ela precisa amadurecer, se recontextualizar num Brasil que pouco tem a ver com o que era 17 anos atrás.” Na opinião do executivo, a lei tem aspectos positivos. “O principal deles é que ajudou a profissionalizar o sistema cultural do país. Assim que surgiu a Lei Rouanet, as pessoas tiveram de aprender a apresentar seus projetos, a fazer seus planejamentos, a desenvolver uma forma de executar e prestar contas.”

O escritor gaúcho Paulo Scott, que suspendeu temporariamente uma sólida carreira no direito para dedicar-se de corpo e alma à literatura, também acredita que, na essência, a lei não é ruim. “O problema é que o artista às vezes vira refém da figura do produtor cultural, que existe para o bem e para o mal. As empresas ganham promoção das suas marcas à custa dos contribuintes e, por uma questão de mercado, querem seus nomes vinculados ao trabalho de quem já é muito conhecido”, aponta.

Justiça seja feita à Petrobras, a empresa que mais investe em cultura no país - somente no ano passado foram mais de R$ 170 milhões. Segundo a gerente de patrocínios, Eliane Costa, a estatal “busca agregar valor à reputação de sua marca com o patrocínio a projetos que valorizam e incentivam a cultura brasileira não só no segmento da produção, como também na difusão e fruição dos bens culturais”. Quem vê o Grupo Corpo, de dança, em ação, reconhece facilmente a marca Petrobras, que é uma das mais valiosas do país e da América Latina, segundo os rankings de “branding”.

A dança, segundo o artigo 18 da Lei Rouanet, permite 100% de abatimento fiscal. Outro artigo, o 26, permite apenas 30%. Do R$ 1 bilhão captado no ano passado, apenas R$ 100 milhões foram obtidos por meio do artigo 26. A meta do MinC é ampliar a atuação do setor privado vislumbrando um horizonte em que essa participação seja igualitária. “Teríamos então R$ 900 milhões advindos da renúncia fiscal e outros R$ 900 milhões provenientes da iniciativa privada”, diz Nascimento. “Por que não criar um logotipo adequado para quem usa os 100% de abatimento fiscal?”, sugere Eduardo Saron. A colocação dos logos das empresas é regulamentada pela lei.

Outra proposta do MinC é criar um selo para empresas com responsabilidade cultural. “Não vejo nenhum problema em haver projetos com 100% de renúncia fiscal, desde que sejam importantes para a cultura brasileira”, diz ele. Como parece evidente no caso do Grupo Corpo.

O Itaú Cultural escolheu os 30% do artigo 26 desde a fundação do instituto, há mais de duas décadas. Significa que a empresa oferece uma contrapartida. Ou seja, usa 70% de dinheiro do próprio bolso no mecenato.

“No Brasil, o sistema de financiamento público às artes baseado em dedução fiscal embaralhou as três fontes originais de financiamento: o Estado, o investimento social privado e o patrocínio empresarial. E muitos artistas e produtores ajudam a propagar o câncer do incentivo fiscal”, diz Yacoff Sarkovas, um dos mais antigos e renitentes críticos das leis de incentivo.
Num país como o Brasil, atrasado no quesito educação e incrivelmente bem colocado no aspecto criativo, arte e cultura têm sido insistentemente relegadas ao segundo plano. A autocrítica do MinC é que o Estado tem pouco peso para cuidar dessa situação. Quando ele aparece, transfere para as empresas a decisão sobre o que patrocinar.

“O Estado leva muito tempo, em todos os seus níveis federativos, para reparar e aperfeiçoar o que não está bem, o que não é justo e eficiente”, observa o escritor Paulo Scott. “O dirigismo hoje está nas mãos das empresas”, diz o secretário Nascimento.
Produtores e consultores que defendem o modelo atual, no entanto, argumentam que os projetos patrocinados são todos aprovados pelo MinC e as empresas estatais federais e estaduais são responsáveis pela decisão de 40% dos investimentos feitos por meio das leis de incentivo. Por esse motivo, o dirigismo apontado pelo ministério seria frágil, pois o Estado estaria bastante envolvido no que a Lei Rouanet viabiliza.

O tema provoca um acalorado debate ideológico. Enquanto a responsabilidade social entrava na moda, o que de certa forma empurrou as empresas para a discussão da cultura no país, o Estado andava meio por baixo. “Há três ou quatro meses, ele estava absolutamente fora de moda”, comenta Eduardo Saron. “E as empresas continuando a ocupar seu papel de provedor de políticas culturais”, continua. “Mas aí o mundo entra em crise, quebrando, e o Estado tem de intervir fortemente para sustentar a economia. Acredito que, aos poucos, ele vai se fortalecer cada vez mais como regulador, quando se tratar de cultura.”

O produtor Rodrigo Teixeira tenta ver mais longe: “O papel do Estado é discutir com as empresas formatos de investimento para a criação de uma indústria cultural.” Ele trabalha com direitos autorais e esteve envolvido na produção de pelo menos um sucesso surpreendente, o filme “O Cheiro do Ralo”, de Heitor Dhalia. “Sou um péssimo captador de incentivos fiscais”, admite, porém. “‘O Cheiro’ foi finalizado por meio de editais. Mas só em outras três ocasiões fui atrás de incentivos”, afirma. “Tomei um ano de nãos por conta do filme.” Os departamentos de marketing de diversas empresas se recusaram a apostar numa obra com esse título. “O Cheiro do Ralo” foi realizado graças ao investimento particular de algumas pessoas.

Teixeira encarou outro problema no projeto literário Amores Expressos, que enviou escritores para uma temporada de um mês em diversas cidades do mundo, com a missão de escrever um romance em seguida. A idéia recebeu um bombardeio pesado vindo de todas as direções. O centro da questão era que Teixeira levantava a possibilidade de recorrer à Lei Rouanet. Escritores chegaram a reclamar dos critérios de escolha do time de colegas que estava de malas prontas para as viagens. Muitos outros criticaram as viagens em si e o luxo que certamente estaria embutido nelas. No meio do tiroteio, Teixeira apenas sacou o projeto do MinC, no qual ele ainda nem sequer havia sido aprovado.

“Fui atrás de investidores que acreditam nesse modelo de negócio e se interessaram em pagar a conta.” O resultado já começa a ser visto nos livros que vão sendo editados pela Companhia das Letras, uma das parceiras do projeto. E os desdobramentos podem vir na forma de filmes e vídeos, como já constava na idéia original. Teixeira está aprendendo a andar no terreno pantanoso em que se transformou a produção de arte e cultura no país. “Sinto falta de gente jovem discutindo as políticas culturais. A gente só vê a velha geração se pronunciando.”
O caso do Amores Expressos exemplifica bem o estado de ânimo geral quando o assunto é lei de incentivo. E o próprio ministro Juca Ferreira é dos mais críticos nos encontros que tem realizado com produtores culturais. As sugestões para a reforma que pretende fazer na lei vão surgindo de todos os lados, o que é bastante saudável. Sarkovas, por exemplo, é favorável a uma redução da carga tributária. “Isso beneficiaria a sociedade civil e ajudaria a construir um Estado mais eficaz, que formule e implemente políticas públicas, financiando diretamente as ações”, diz. “A dedução fiscal gera produção cultural da mesma forma que dar dinheiro grátis para granjeiros gera produção de galinhas. Além do mais, ela distorce o investimento privado real via patrocínio de verdade, feito com dinheiro das empresas.”

O produtor Rodrigo Teixeira acredita em linha de crédito para produtores culturais. “O governo deveria incentivar os bancos governamentais a arrumar linhas de crédito, a juros baixos, para ajudar a cultura, seja no teatro, no cinema, na produção independente de TV ou na literatura.”
“Sinto falta de uma presença mais ampla de outras grandes empresas entre as grandes incentivadoras de cultura. Afinal, o governo federal, só em 2007, destinou cerca de R$ 1 bilhão à renúncia fiscal para a cultura”, diz Eliane Costa, da Petrobras. É o que ela mudaria no atual panorama do mecenato brasileiro.

Já Paulo Scott - cujos projetos recebem apoio de pequenos empresários (”livrarias, editoras, cafés e gráficas”, ele explica) - tornaria as ferramentas de acesso mais simples, menos burocratizadas e menos dependentes da figura do intermediário. “Boas idéias nem sempre dependem de produtores conhecidos e estabelecidos”, diz. “Também priorizaria as obras de experimentação, as obras de resgate cultural e histórico, de promoção da igualdade - é patético esse nosso hábito de dar atenção só ao que já é superbadalado”, completa o escritor.
“Eu disse isso ao próprio ministro Juca”, afirma Eduardo Saron, do Itaú. “Não adianta só mexer na Lei Rouanet. Se você mexer apenas nela e não no orçamento do ministério e no Fundo Nacional de Cultura, continuaremos tendo um sistema descompensado. Com orçamento tão baixo, você sempre vai querer se valer da lei para fazer as políticas do ministério.”
Seria uma discussão quase sem fim, não fosse o fato de o governo ter anunciado a disposição de apresentar o resultado da conversa com a sociedade para o próprio Congresso, no começo do ano que vem.

Mas também não significa que acabou. A famigerada Lei do Audiovisual, uma ampliação da Lei Rouanet criada por Itamar Franco em 1993, ainda está em pé - e qualquer tentativa de discuti-la parece bater num muro intransponível. Há muito que se fazer num país tão jovem como o Brasil, e tão carente de cultura. Um país onde, segundo a pesquisa do MinC, apenas 13% dos brasileiros freqüentam cinema alguma vez por ano, 92% dos brasileiros nunca freqüentaram museus, 93,4% dos brasileiros jamais freqüentaram alguma exposição de arte, 78% dos brasileiros nunca assistiram a um espetáculo de dança, embora 28,8% deles saiam para dançar.

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