Por André Setaro
Homenagem a Agnaldo Siri Azevedo que, há 25 anos, viajou para o desconhecido. Sua partida seu deu em 30 de julho de 1997. Não comprou passagem de volta e, a rigor, nem mesmo a passagem. A Implacável simplesmente o levou. Deixou vários amigos, entre eles Tuna Espinheira, companheiro de idéias e de copo. Fica o registro e a saudade.
Quando da inauguração do Cinema do Museu (Corredor da Vitória), em outubro de 1996, um dos filmes apresentados foi O capeta Carybé, de Agnaldo Siri Azevedo. Finda a exibição, um coquetel reuniu os convidados e, lembro-me bem, fiquei a tomar uma cerveja, em pé, em companhia do autor do filme, e de seu iluminador, Vito Diniz, que, ano seguinte, morreriam e, apesar do lugar comum do dito, a deixar duas imensas lacunas para o já anêmico cinema baiano. Não sabia que, naquele momento, estava vendo, pela última vez, os dois cineastas. A Implacável, como mostrou Ingmar Bergman em O sétimo selo (Det sjunde inseglet, 1956), não perdoa ninguém. Siri, sobre ser um profissional de cinema de primeira ordem, com um curriculum vitae composto por trabalhos em importantes filmes de Glauber Rocha, notabilizou-se como um dos mais expressivos documentaristas da realidade baiana. Vito Diniz fotografou quase todos os filmes realizados nesta soterópolis, desde os tempos de Meteorango Kid, o herói intergalático (1969), de André Luiz Oliveira, passando pelos curtas metragens e até incursões no famigerado superoitismo. Iluminador de excelência, por teimar em não sair de Salvador, deixou de ser registrado como um dos melhores fotógrafos do cinema brasileiro, ainda que o seja.
A Trigésima Quarta Jornada Internacional de Cinema da Bahia prestou uma homenagem a Agnaldo Siri Azevedo pela passagem do décimo ano de sua morte, ocorrida em 1997, mesmo ano no qual também foi embora o grande Vito Diniz. Na oportunidade, além de uma exposição, entre outras atividades, foi programada a exibição de um documentário de Roman Stulbach, que focaliza os filmes e a trajetória de Siri. E quem o realizou foi um amigo do homenageado, além de montador de seus filmes.
Na década de 70, quando o Ciclo Bahiano de Cinema (A grande feira, Barravento, Tocaia no asfalto, outros) e o chamado surto underground(Meteorango Kid, Caveira my friend, outros) já eram favas contadas, e o Brasil imerso nos seus anos de chumbo, com a ditadura Médici, o cinema baiano se encontrava numa calmaria imensa, excetuando-se um ou outro projeto esporádico, e, entre eles, Akpalô, de José Frazão e Deolindo Checcucci, O anjo negro, de José Umberto, longas, e pouquíssimos curtas. O surgimento das jornadas baianas a partir de 1972, sempre realizadas num espaço quase consular, como o era o Instituto Goethe (Icba) contribuiu para ativar o ânimo dos cineastas baianos e, a estes, possibilitar o contato com outros realizadores do eixo Rio-São Paulo.
Mas foi preciso que se descobrisse o Super 8 para que se instalasse, aqui, uma movimentação maior em torno do que se queria como expressão pelas imagens em movimento. O embrião dos atuais realizadores que proliferam no panorama do cinema baiano contemporâneo se encontra no superoitismo, pois superoitistas foram Edgard Navarro, José Araripe, Marcos Sergipe, Fernando Beléns, Carlos Modesto, Cícero Bathomarco, e o pessoal do Grubacine. Todo mundo queria fazer o seufilmeco e houve uma espécie de coqueluche, que atordou bastante os freqüentadores das mostras competitivas das jornadas, porque havia, nelas, filmecos de mais de uma hora de duração e sem uma estrutura audiovisual que se pudesse aceitar como um filme.
O cinema baiano estava, portanto, dividido entre duas vertentes: a dos documentaristas, que abominavam as incursões superoitistas (Agnaldo Siri Azevedo, Tuna Espinheira, Timo Andrade, Celso Campinho, Roberto Gaguinho, Chico Drummond, entre outros) e a dos superoitistas (os citados acima e mais). Chegou-se até à fundação de duas associações ditas de cineastas: uma, de profissionais, congregando a ala dos documentaristas, e outra, que congregava os superoitistas. As duas não se bicavam.
Agnaldo Siri Azevedo, porém, continuava a fazer seus documentários, a apreender o pitoresco da cultura local. Embora outros também seguissem seu exemplo, o capitão do time dos documentaristas era Siri, secundado por Tuna e seus coadjuvantes. Isto quer dizer: o fato indiscutível é que Siri inaugurou uma escola de documentário – ainda que a seguir as lições da Caravana Farkas - cujos desdobramentos se fizeram logo sentir em filmes de outros realizadores baianos. A rigor, após ter sido, nos anos 60, diretor de produção e assistente de Glauber Rocha em Barravento, Deus e o diabo na terra do sol, Terra em Transe, entre outros, quando quase se pensou que o velho crustáceo fosse se aposentar, eis que aparece, em 1969, com Dança negra, um documentário seu, com um olhar particular sobre um aspecto da cultura.
Incentivado, Agnaldo Siri Azevedo realiza uma feliz adaptação da poesia de Gregório de Mattos e Guerra, que, dita por Emmanoel Cavalcanti, em trajes de época, a gritar pelos becos e ruas da Bahia os versos do poeta, configura O Boca do Inferno 1974), que de tanto apreciado fez-lhe realizar, anos depois, um segundo filme. A partir de O Boca do Inferno é que começa a colecionar prêmios das jornadas baianas. A seguir vieram: As Philarmonicas (1975), Carbonato ou Xique-Xique de Andraí: Cidade Fantasma (1976), com Clyde Morgan, dançarino americano, que executa uma performance minimalista na arquitetura colonial da cidade.
No ano seguinte, foi a Ilhéus, com o já também desaparecido Rony Berbert de Castro, para filmar Creio em ti, meu São Jorge de Ilhéus, que documenta o lugar imortalizado por Jorge Amado em Gabriela, Cravo e Canela. Quase um filme por ano em seu período mais fértil. O mundo de Seu Nestor, por exemplo, de 1978, resgata um anônimo, um homem que fabrica a sua própria cerveja e vive para o seu universo interior. E continua: Anistia (1979), Sem saída (1980), este com desenhos de Calazans Neto sobrepostos às suas imagens, que apresentam o estado de calamidade a que chegou, na época, a doença de Chagas. Aliás, o artista Calá seria, anos mais tarde, objeto de um documentário especial:Calazans Neto: mestre da vida e das artes (1987). Ainda no despontar da década de 80, outro filme, outro documento: Zambiapunga de Cairu - Festança de Outrora. O ano de 1980 foi um ano feliz para o crustáceo, pois conseguiu ainda realizar um terceiro filme, que é o citado opus 2 sobre Gregório de Mattos.
E vieram: Suíte Bahia (1983), Memória de Deus e o Diabo em Monte Santo e Cocorobó (1984), documentário cheio de alegorias que tem a participação do poeta (também já extinto) Carlos Sampaio – que quase na mesma época trabalhou em O mágico e o delegado, de Fernando Cony Campos, filmado em Cachoeira. Ainda e no mesmo ano: Não Houve Tempo Sequer Para as Lágrimas. A seguir: Adeus Rodelas (1969), registro pungente dos últimos momentos de uma cidade que seria inundada pela barragem de Sobradinho.
Depois que fez, em 1990, A chuva que veio do chão, um hiato se abriu na filmografia de Siri, vindo a retornar a filmar somente em 1996, com a sua obra-prima, O capeta Carybé. Acredito que os primeiros anos da década de 90, com a caneta collorida que aboliu, de um só golpe, a Embrafilme e o Concine, o fazer cinema no Brasil ficou difícil até meados de seu decurso, quando da retomada do cinema brasileiro.
A filmografia de Agnaldo Siri Azevedo possui seus temas recorrentes (o registro da cultura baiana em todos os seus aspectos) e um estilo de documentário que preza mais o objeto documentado do que o brilho narrativo exterior ao documento querido.