quarta-feira, 12 de agosto de 2009

ORIGENS DO CINEMA NOVO: A CULTURA POLÍTICA DOS ANOS 50 ATÉ 1964 (1)

Por Beto Magno

Não é, portanto, dizendo “não sou mais um pequeno-burguês, movimento-me livremente no universal” que o intelectual pode se unir aos tabalhadores. É, justamente ao contrário, pensando: “sou um pequeno-burguês; se para tentar resolver minha contradição, alinhei-me ao lado da classe operária e camponesa, não deixei por isso de ser um pequeno-burguês” (Sartre).(2)



Quais eram os elementos que a caracterizavam e o que era a cultura política compartilhada por muitos intelectuais e militan­tes populistas e de esquerda brasileiros durante os anos 50 e começo dos anos 60? Durante esse período, o Brasil sofreu um intenso processo de industrialização com resultados sociais muito contraditórios (3). O perfil da sociedade brasileira passava rapidamente de agrário-exportador a industrial, com uma forte urbanização causada pela migração de milhões de pessoas do campo para as cidades, mormente para o Rio e São Paulo. O mercado de trabalho e o mercado consumidor cresceram junto com as camadas médias urba­nas, de onde saíram os intelec­tuais e simpatizantes dos setores populistas e de esquerda. Dentro desse contexto, os intelec­tuais aderiram a uma mesma leitura da realidade brasileira, que, grosso modo, caracterizava o país como subdesenvolvido, cultural­mente colonizado, onde as “classes fundamentais” - a burguesia e o proletariado - eram incipientes, pouco desenvolvidas[i].


Um dos pilares sobre os quais essa cultura política - na qual subdesenvolvimento e dominação cultural eram categorias centrais - se sustentava era a busca do que seria “nacional” e “democrático”. Os debates relativos a estes atributos inseriam-se numa problemática mais ampla, a da questão desen­vol­vimentista. A maneira mais rápida do país superar suas contradições seria desenvolver-se economicamente de uma maneira autôno­ma e independente. Tal desenvolvimento teria de apoiar-se no fortalecimento das “forças progressistas”, formadas pela burguesia industrial nacionalista, o proletariado e os setores técnicos da classe média que, após serem ideologi­camente esclarecidas pelos intelectuais “progressistas”, se tornariam uma “vanguarda política capaz e bem organizada” (4). Àquela época, segundo uma leitura reducionista do marxismo feita de acordo com os objetivos que se pretendia alcançar, desconsideravam-se as particularidades conjunturais e grandes questões teóricas gerais do próprio marxismo. Assim, para que o Brasil se desenvolvesse, uma “revolução burguesa” seria necessária, ou seja, o desenvolvimento das forças produtivas proporcionaria à burguesia e ao proletariado as condições histórico-materiais para que se tornassem classes sociais para si, conscientes do seu papel histórico. Só havendo classes sociais conscientes, definidas e antagônicas, as contradições se acirrariam e as condições para a sua solução estariam colocadas. De acordo com esse esquema, a acumulação capitalista e as conquistas operárias fariam parte de um mesmo e único processo.


Nessa conjuntura sócio-político e cultural, que vai da morte de Getúlio Vargas até o golpe militar de 1964, o Partido Comunista do Brasil (PCB) tornou-se um dos mais importantes atores políticos. Ele “adquiriu um papel crescente na estrutura do desen­volvimento nacionalista” (Pécaut, 1990:141). Apesar de estar na ilegalidade desde 1947, o Partido contava com numerosos e influentes intelectuais que gravitavam em torno dele, seja como militantes, seja como simpatizantes (ibid: 142). A aproximação desses intelectuais se deu, entre outros motivos, graças à participação do PCB na campanha pela nacionalização do petróleo, que culminou com a criação da Petrobras, em 1953, ao seu posicionamento a favor da industrialização nacional e da formação de uma ampla coalizão nacionalista e ao seu posicionamento como “vanguarda” do movimen­to pelas “refor­mas de base” (ibid.). Sua influência vai-se fazer sen­tir de forma marcante sobre o ISEB (Instituto Supe­rior de Estudos Brasileiros) e, mais tarde, no CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes).


O ISEB foi o principal arauto das teses desenvolvimentistas e exercia influência na política dos governos JK e Jango. Forneceu os alicerces teóricos para as mais diversas correntes, inclusive para membros do governo, e quadros para os vários escalões desses dois governos. Foi criado no Rio, em julho de 1955, por um decreto do presidente interino Café Filho e recebeu subvenções da CAPES (Pécaut, op.cit: 109). A proposta do grupo de intelectuais que fundou o ISEB era assumir uma liderança na política nacional por seus próprios meios. Eles se dispunham a arregimentar e organizar as forças progressistas e esclarecê-las ideologicamente. Se autodefiniam como uma vanguarda capaz e bem organizada. O ISEB foi fechado pelos militares após o golpe de 1 de abril (5).


O CPC da UNE foi formado em 1962 e fechado pelo golpe militar em 1964. É interessante notar-se que a experiência do CPC “está filosoficamente ligada ao ISEB” (Ortiz, 1986: 68). Sua meta era utilizar elementos da cultura popular para desalienar o povo. A alienação é a categoria fundamental que os cepecistas utilizaram para analisar a realidade brasileira. A cultura popular é vista como verdadeira enquanto a cultura das classes dominantes é alienada (6).


Algumas das teses do PCB chegaram a situar-se no centro dos debates intelectuais, transformando-se, muitas vezes, numa espécie de senso comum no qual os intelectuais progressistas se reconheciam. “Em torno do Partido Comunista e de sua interpretação do nacionalismo formou-se uma cultura política singularmente fecunda” (Pécaut, op.cit.:141). Quatro fa­to­res teriam contribuído para a aproximação entre intelectuais e o PCB: a) o partido era o portador da tradição estatal dos intelectuais brasileiros que via no Estado o veículo capaz de modernizar a sociedade brasileira, realizando as mudanças estruturais que se faziam necessárias; b) responsa­bilizou-se pelo acesso à modernidade; c) concebia o povo como a encarnação simbólica da nação; d) sinalizava a possibilidade de que a “revolução brasileira” pudesse ser feita de forma pacífica, via desenvolvimento econômico e reformas “democráticas” da Constituição (ibid.:144-8).


Em nome dessa “revolução brasileira”, o Partido criou o conceito de forças progressistas que se confundia, até um certo ponto, com o de “massas populares” que, após sofrerem uma ação ideológica educadora-conscientizadora, se tornariam povo. As categorias massa e povo eram definidas nessa época, por algumas correntes marxistas, em relação ao grau de consciência alcançado. A massa não tem consciência; o povo, a tem. Neste momento, a questão da afirmação nacional se sobrepõe à questão democrática: as contradições entre as “classes fundamentais” deveriam permane­cer latentes e serem resolvidas de forma pacífica. Mesmo porque, como já foi dito, essas duas classes mal existiam no Brasil, cuja economia baseava-se num modelo agrário-exportador. Entretanto, nesse período, as formas de representatividade não são tidas como questões fundamentais. Elas não devem atrapalhar o desenvolvimento da aliança nacionalista progressista.


O papel que a produção cultural teria que desempenhar nesse processo de afirmação nacional era fundamental. A burguesia e as camadas urbanas guiavam seu comportamento por aquilo que era ditado pela produção cultural estrangeira, principalmente pelo cinema de Hollywood. Diante disso, a necessidade de se criarem condições para que o artista brasileiro pudesse enfrentar as produções estrangeiras era uma das frentes de atuação dos nacionalistas. A luta pela afirmação de uma cultura nacional tinha como um dos seus principais objetivos buscar fazer com que o cinema brasileiro, por ser uma arte e um veículo de comunicação de massa, ocupasse os espaços do cinema estrangeiro ou que, ao menos, conseguisse dele tomar uma fatia do mercado brasileiro.



1 - Cinema Novo: primórdios.


Nos anos 50, encontramos um grupo de jovens que começavam a discutir a idéia de se criar um cinema nacio­nal, que construísse uma identidade político-cultural para o povo brasileiro, e que posteriormente vieram a criar o Cinema Novo. Porém, os cinemanovistas não foram os primeiros a perceberem a importância de se lutar por um cinema brasileiro forte, com uma linguagem própria. Uma geração anterior (o critério aqui não é de idade, mas de atividade) já havia começado a articular, no começo da década do 50, uma crítica sobre o cinema brasileiro, diferente daqueles críticos dos anos 30 e 40 que nem sequer consideravam a existência de tal cinema. Essa crítica questionava a dependência do mercado brasileiro aos filmes importados, a submissão do cineasta no Brasil à linguagem do cinema produzido em Hollywood e outros centros mais desenvolvidos e começou a lutar para que o cinema nacional se tornasse uma das expressões da cultura brasileira, o que depois foi encampado pelo Cinema Novo. Nem os críticos que os precederam cronologicamente, nem os cinemanovistas discutiam mais a formação do povo - assunto praticamente esgotado pelos modernistas em 1922 -, já constituído como uma das categorias fundamentais da cultura política da esquerda nacionalista e tido como um dos principais agentes de mudança da realidade brasileira. Faltava, entretanto, definir as características e especificida­des daquele povo, tarefa a que se propuseram os criadores do Cinema Novo. O ponto de partida deveria ser um mergulho na “realidade” sócio-político-cultural brasileira, da mesma forma que o fizera o movimento modernista cerca de trinta anos antes. A identidade do povo e a cultura nacional que pretendiam forjar tinham um forte compo­nente anti-imperialista. Seguindo Frantz Fanon, eles acreditavam que “lutar pela cultura nacional significa, antes de tudo, lutar pela libertação nacional, por aquela base material essencial, que torne possível a construção de uma cultura” (7).


O Brasil era visto como um país colonizado culturalmen­te e esta característica era muito marcante com relação ao cinema. A idéia de uma cultura colonizada está intimamente subordinada às idéias desenvolvimentistas, então em voga. Em nome do desenvol­vimento brasileiro, era preciso mudar uma atitude resignada para com a realidade do país. Esta conjuntura não poderia ser transformada enquanto não se alterasse a atitude das pessoas frente ao american way of life, que moldaria o imaginário da burguesia e das camadas médias da população brasileira e tinha no cinema americano um de seus mais importantes instrumentos de difusão. No caso do Brasil e do cinema brasileiro, era preciso que o filme nacional ocupasse o lugar do produto estrangeiro. O cinema brasileiro seria estrangeiro no próprio país porque estava destinado a ocupar as migalhas do mercado, deixadas cair da mesa farta do cinema de Hollywood. Para Maria Rita Galvão e Jean-Claude Bernardet, analisando a “situação colonial” do cinema brasileiro, tal como definida por Paulo Emílio Salles Gomes,


O fator básico que explica a “situação colonial” do cinema brasileiro é o fato de que o “produto importado” ocupa o seu lugar. Trata-se, portanto, de uma definição de ordem econômica que será metaforicamente transposta para o campo da cultura. Importamos não apenas objetos manufaturados, mas idéias prontas - e formas, modelos, estruturas de pensamento - forjadas em função de realidades diversas que correspondem mal a nossa própria realidade. Estas idéias ocupam um tal espaço em nossas mentes que pouco sobra para que nelas se desenvolvam idéias próprias. Além de produtos industriais, os filmes são também produtos culturais. Juntamente com os filmes, importamos uma concepção de cultura - e uma concepção de cinema que identifica com o próprio cinema o cinema estrangeiro. Nisto reside o cerne da “colonização” cultural: a “situação colonial” - cuja marca cruel e inescapável é a mediocridade - se configura quando se adota um modelo importado que não se tem condições de igualar (Galvão e Bernardet, 1983:166-7).



A questão colonial, era um dos grandes temas políticos que dominavam as esquerdas mundiais juntamente com as guerras nacionais anti-imperialistas. A revolução em Cuba e a libertação da Argélia eram alguns dos mais importantes paradigmas da esquerda mundial, nesse momento. “O prestígio do terceiro mundismo esteve ligado ao entusiasmo pelas lutas de emancipação nacional e a reservas em relação à União Soviética” (Schwartz, 1987: 127). Assim, um problema da esfera política era transposto para a esfera cultural e servia como pressuposto básico para a atuação dos cinemanovistas. Flávio Moreira da Costa afirma que


... nossa cultura era importada: no bojo do colonialismo político-econômico vinha o colonialismo cultural (...). Em conseqüência disso, (...) [fazia-se] uma confusão entre cultura e erudição (...) ignorância de uma cultura brasileira popular, mas conhecimento [de autores estrangeiros] (Costa, 1966:172).



Em um texto de 1960, escrito logo após o término da Primeira Convenção Nacional da Crítica Cinematográfica, Paulo Emílio Salles Gomes analisa a situação colonial do cinema brasileiro tendo como ponto de partida a relação público/produtor. Ele diz, referindo-se mais especificamente aos “chanchadeiros”, que os produtores


produzem determinados gêneros de filmes que eles próprios desprezam, alegando ser o único tipo de cinema brasileiro que o público aceita. No fundo, esses homens (...) estão convencidos de que o público brasileiro é infenso ao cinema nacional (...) Para ambos, cinema mesmo é o de fora, e outra coisa é aquilo que os (produtores) fazem e o (público) apre­cia. (Salles Gomes, 1981:287).



Os próprios produtores dos filmes brasileiros que conseguiam grandes sucessos de público desqualificavam seu produto evidenciando, assim, mais um sintoma de dominação colonial.


A luta do Cinema Novo em prol de um cinema nacional ganhou força a partir do começo dos anos 60 quando o grupo, apesar de espalhado (uns, estudando cinema no exterior, outros, vivendo e trabalhando no Brasil), percebeu que só conseguiria mudar alguma coisa se se unisse. Em carta de Glauber Rocha a Paulo César Saraceni, que estava estudando cinema na Itália, é possível captar essa ânsia em criar um cinema no Brasil. Diz o texto:


(...) estamos recriando nosso cinema e você precisa voltar para ser soldado nesta luta. Não quero que você fique mais tempo na Itália. (...) precisas FAZER FILMES aqui no Brasil dentro de nossa luta: joaquim [Pedro de Andrade], eu, [Luis] paulino [dos Santos], você, miguel [Borges], marcos [Faria], leon [Hirszman] e outros novos que surgirão (aqui foram respeitados a pontuação e os destaques do texto original) (Saraceni, 1993:94-95).



Em outra carta a Paulo César Saraceni, Glauber Rocha deixa transparecer toda a sua vontade e angústia em lançar o movimento.


Escrevi um artigo negando o cinema. Não acredito no cinema, mas não posso viver sem o cinema. Acho que devemos fazer revolução. Cuba é um acontecimento que me levou às ruas, me deixou sem dormir. Precisamos fazer a nossa aqui. Cuba é o máximo (...). Estão fazendo um novo cinema (...), vários filmes longos e curtos. Estou articulando com eles um congresso latino-americano de cinema independente. Vamos agir em bloco, fazendo política. Agora, neste momento, não credito nada à palavra arte neste país subdesenvolvido. Precisamos quebrar tudo.


Do contrário eu me suicido (Saraceni, op.cit.:101).



Dois dados importantes surgem nessa carta. O primeiro, é a associação de um cinema nacional com as lutas nacionais anti-imperialistas. O segundo, é que quando ele diz que não acredita mais no cinema, referia-se a um determinado tipo de cinema que partia de um modelo esgotado e falido, cuja estrutura era formada por estúdios, grandes orçamentos, star syistem... Mas havia novidades interessantes. Na mesma carta, cujo um trecho foi transcrito acima, Glauber Rocha pede que Gustavo Dahl, que também estava na Itália estudando cinema, envie-lhe um artigo sobre “o novo Antonioni, L’aventura” (ibid: 100). Por isso, para superar esse cinema “reacionário”, Glauber Rocha estava ansioso. Ele queria que o grupo de amigos lançasse logo um movimento que viesse a revolucionar a linguagem do cinema, um cinema que ouvisse a voz do homem (Rocha, 1981:17): “Nosso cinema é novo porque o homem brasileiro é novo e a problemática do Brasil é nova e nossa luz é nova e por isso nossos filmes nascem diferentes dos cinemas da Europa” (ibid.). “Nossa geração tem consciência: sabe o que deseja. Queremos fazer filmes antiindustriais (...)” (ibid.).


O Cinema Novo conseguiu uma grande vitória ao fazer com que o cinema brasileiro passasse a ter sua existência reconhecida pelos principais críticos de cinema do Brasil e passasse a freqüentar suas colunas com maior assiduidade. Antes dele, Moniz Vianna, Ely Azeredo e outros não reconheciam, sequer, que existisse um cinema nacional, exceção feita aos filmes da Vera Cruz. As produções brasileiras eram tratadas com desdém e ironia. Em geral, esses críticos só se dignavam a escrever sobre as produções européias e norte-americanas que chegavam até nós. Ely Azeredo, que foi quem deu o nome ao Cinema Novo, renegou o seu “filho” e discordava veementemente dos defensores do movimento, polemizando com seus diretores.



2 - Reação à Vera Cruz:



A Vera Cruz foi uma tentativa, malograda, de se instalar uma indústria cinematográfica no Brasil. Fundada em São Paulo em 1949, com os estúdios em São Bernardo do Campo, pretendia produzir no Brasil um cinema de “qualidade” para fazer frente àquelas “fitas horrorosas de que todo mundo falava muito mal, mas que na verdade nunca ninguém tinha visto” (8). Fazer cinema de “qualidade” significava, para os empresários que fundaram esse estúdio, fazer cinema como os europeus, principalmente ingleses e italianos neo-realistas “até agora a maior revelação cinematográfica do pós-guerra” (citado por Galvão, 1981:81). O cinema americano era tido como um cinema puramente de espetáculo, incapaz de satisfazer o gosto de um público mais refinado. Para Mariarosaria Fabris, não há contradição no fato de os dirigentes da Vera Cruz criticarem o cinema norte-americano e utilizarem sua forma de produção porque, para eles, o que era lamentável não eram os recursos técnicos utilizados (estúdio, equipe numerosa etc.), mas o mau uso que era feito daqueles recursos (Fabris, 1994:34). O cinema brasileiro era tido como inferior e nem considerado cinema era. Por isso, ao criarem a Vera Cruz, seus diretores contrataram técnicos estrangeiros, na sua maioria ingleses, para trabalharem em seus estúdios. Uma das poucas exceções feitas na área técnica foi a contratação de Alberto Cavalcanti para ser seu produtor geral (9). Cavalcanti estava radicado na Europa havia anos. Participara ativamente do movimento documentarista inglês dos anos 20 e 30 e do movimento da vanguarda francesa junto com Jean Renoir e outros. Ele foi chamado a dirigir a empresa mais por sua longa relação com o cinema europeu do que por sua relação com o cinema brasileiro.


Um fato é interessante de se notar. O Neo-realismo, tido, pelos fundadores da Vera Cruz, como a maior revelação cinematográfica do pós-guerra, influenciou a escolha dos técnicos contratados e era um dos modelos de cinema a serem seguidos. Porém, não conseguiu influenciar determinantemente a forma de produzir desse estúdio. O Neo-realismo tinha como algumas de suas características principais a produção barata, fora dos estúdios, com atores pouco conhecidos ou amadores. Ora, a Vera Cruz construiu um estúdio onde eram produzidos a maior parte dos filmes e isso implicava numa produção cara, pouco ágil, com o uso de muitos técnicos e contratou atores consagrados de teatro do Rio e de São Paulo. Alex Viany (que trabalhou na empresa) teceu um comentário pertinente sobre esse assunto ao afirmar que


Houve um abrupto encarecimento da produção, nem sempre justificado pela melhoria técnica e artística. Muita gente diz, provavelmente com razão, que a Vera Cruz quis voar muito alto e muito depressa, construindo estúdios grandes demais para seu programa de produção, ao mesmo tempo em que se descuidava de fatores tão importantes como a distribuição, a exibição, a administração e a arrecadação (Viany, 1987: 109).



E complementa dizendo que “quando veio a tão prevista derrocada, espalhou-se o desânimo. Resultado imediato: retração dos capitais, paralisação quase total da produção” (ibid.). Esse “modelo” de produção, segundo Cacá Diegues, persistiu e causou problemas ao cinema paulista “por causa exatamente da tradição da Vera Cruz. Em São Paulo, cada vez que um sujeito queria fazer um filme era sempre confrontado com o sucesso artístico da Vera Cruz, de uma maneira positiva, e, de uma maneira negativa, com o seu fracasso econômico” (Diegues, E, 1993) (10).


Outra crítica feita à Vera Cruz é não ter usado, ou ter usado pouco, técnicos e diretores que já faziam cinema no Brasil. Essa diretriz teria tornado seus filmes muito pouco brasileiros. Os técnicos estrangeiros não entenderiam a cultura do país que estavam exibindo nas telas e nem certas características locais específicas, como a luminosidade. Além do mais, a empresa preocupava-se apenas com a produção, deixando a distribuição a cargo de multinacionais também produtoras de filmes e que não tinham interesse nenhum em ceder um pedaço do seu mercado para o cinema brasileiro. Segundo Mariarosaria Fabris,


[para a Vera Cruz] o cinema nacional (...) era entendido como tal enquanto produção e não enquanto conquista de mercado, também porque a Vera Cruz estava mais interessada em projetar-se no exterior do que em assegurar para si o mercado brasileiro. Caso contrário, não se explicaria mais tal erro num período em que não faltaram alertas contra o perigo que a inflação de fitas norte-americanas constituía para qualquer país (Fabris, op.cit.:43).



Viany reconhece, entretanto, aspectos positivos na Vera Cruz ressaltando uma melhora técnica e artística dos filmes brasileiros graças aos técnicos estrangeiros que vieram para cá e que, de uma certa maneira, treinaram os brasileiros para desempenharem melhor suas funções. Ressalta também que esta experiência empresarial “precipitou a industrialização do cinema no Brasil” (Viany, op.cit.: 109).


Apesar de ser uma experiência realizada em São Paulo, a derrocada da Vera Cruz exerceu influência sobre o Cinema Novo, no Rio de Janeiro, sobretudo enquanto padrão econômico, técnico, cultural e artístico a ser evitado. A Vera Cruz tentou implantar um modelo de cinema que não deu certo e que, na opinião de todos os cinemanovistas, não tinha condições de dar certo. Era, portanto, um modelo a ser rejeitado. Entre outras coisas, a produção em estúdio exigia muitos capitais, que nunca estiveram disponíveis no Brasil para o cinema e os cineastas brasileiros deveriam privilegiar a produção barata. A produção em estúdio era um processo pouco ágil e, por isso, devia-se privilegiar a produção de filmes rodados em espaços abertos, com luz natural e câmera na mão. As produções da Vera Cruz se baseavam em um cinema formalmente pouco criativo, como o que era feito na Europa antes dos cinemas novos europeus, e para os cinemanovistas, o cinema brasileiro deveria se preocupar com formas e conteúdos novos. O cinema da Vera Cruz era pouco brasileiro, porque mostrava o homem e a cultura do país de forma estilizada, exótica, pouco natural e, muitas vezes, negativa; o novo cinema brasileiro deveria ter como sua base primordial o homem e a cultura do país. Como disse Mário Carneiro em sua entrevista “a gente saía do estúdio e ia para o ar livre para tentar documentar ao máximo os filmes (...) ao invés de se prender ao estúdio” (Carneiro, E, 1993). Para David Neves, o cinema da Vera Cruz era “muito estrangeirado, veio muita gente contratada de fora e não deu certo, então eles desistiram” (Neves, E, 1993). Paulo César Saraceni diz que “nós não queríamos aquele equipamento. Nós queríamos fazer filmes já, naquele momento, com o que tivesse” (Saraceni, E, 1993).


As produções da Vera Cruz serviram como um parâmetro real e negativo para o Cinema Novo e representavam aquilo que deveria ser rejeitado e descartado na produção de um cinema nacional e popular. Sua linguagem era considerada reacionária e burguesa por não retratar o homem brasileiro, sua cultura, seus problemas, sua forma de falar nem retratar o ambiente do país. Na luta contra o sudesenvolvimento e a dependência cultural, as produções da Vera Cruz eram tidas como inimigas pelos cinemanovistas, já que não ajudavam a desalienar o povo e reforçavam modelos que submetiam o público brasileiro à dependência cultural.



3 - Chanchada: o alvo principal.



No Brasil dos anos 50 e 60, dos estúdios paulistas e das chanchadas, fazer bons filmes era sinônimo de fazer filmes nos moldes do cinema estran­geiro de “qualidade”, feito por Hollywood pelos cinemas industriais europeus. A chanchada procurava parodiar esse cinema (a Atlântida fez várias paródias de filmes norte-americanos) (11).


Como alternativa ao cinema de “nível internacional” da Vera Cruz, e à chanchada, o Cinema Novo propunha um cinema anti-industrial, “aberto, sem nenhum dogma, nenhum preconceito, (...) autoral­, sincero, criativo, revolucionário e que olhasse a realidade social e econômica do Brasil com vontade de analisá-la, transformá-la num mundo melhor para todos” (Saraceni, 1993:118) e com um “alto nível de compromisso com a verdade” (Rocha, 1981:30). Podemos acrescentar a isso a palavra moderno. Moderno porque contemporâneo aos cinemas novos que se fazia em outros países naquele momento e porque diferente do antigo cinema brasileiro. Das antigas produções brasileiras, os cinemanovistas só consideravam dignos de serem vistos os filmes de Humberto Mauro, pela sua “brasilidade”, e, muito posteriormente, Limite. Ainda segundo Paulo César Saraceni,


Se adotamos o nome cinemanovo, não foi por imitação. É porque - certos ou errados - envergonha dizer que fazemos ou vamos fazer cinema brasileiro ombro a ombro com aqueles que, até agora, apenas gastaram dinheiro com imponências fracassadas. (Saraceni, op.cit.: 119).


O Cinema Novo, como todo movimento que propõe uma mudança radical e precisa demarcar e conquistar seus espaços, tinha que definir os inimigos a combater. Seu alvo principal foi a chanchada. Glauber Rocha a define, juntamente com os filmes feitos pelos estúdios paulistas, como um “cinema populista”, que “denuncia o povo às classes dominantes” (Rocha, 1963:82). As opiniões de outros cinemanovistas sobre a chanchada caminham nessa mesma direção. Walter Lima Jr. (Lima Jr., E, 1993), por exemplo, a qualifica como “um filme único que se repetia a cada ano”, “uma porcaria”, “cópia do cinema americano”. Para Cacá Diegues, a chanchada era “o fim da picada, uma coisa de uma vulgaridade de paródia mal feita do cinema americano” (Diegues, E, 1993). De acordo com Eduardo Coutinho, “era um cinema para um público popular e infantil (grifo nosso), que jamais ia ser levado a sério e que, portanto, não poderia mudar coisa alguma”. (Coutinho, E, 1993). Esse enunciado de opiniões não pretende ser exaustivo e completo; várias outras poderiam ter sido citadas. Entretanto, estas aqui ilustram o sentimento antichanchada que percorria o movimento. O importante é ficar claro que a chanchada era condenada por sua falta de ousadia estética, por seu caráter de imitação do cinema de Hollywood, por ser um cinema primário e que não ajudava o trabalho de conscientização do público e de mudanças na realidade do país. Em suma, a chanchada era criticada, basicamente, por não se enquadrar nos projetos que as esquerdas brasileiras haviam elaborado para o Brasil e o povo brasileiro; na imagem que estas queriam passar do país; na proposta, mais específica, que as esquerdas criaram para a função que a arte deveria desempenhar naquela conjuntura.


Depois de alguns anos, quase todos os cinemanovistas fizeram autocrítica e alguns deles utilizaram elementos da chanchada. Esse é o caso de Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade. Nele foram usados não só elementos estéticos da chanchada como também Grande Otelo, estrela de vários filmes da Atlântida. Numa releitura a posteriori, muitos deles alegam nunca terem sido contra a chanchada. Cacá Diegues afirma que “não havia uma campanha contra o velho cinema brasileiro” (Diegues, E, 1993) porque este já não existia mais: os estúdios paulistas tinham falido e a chanchada havia migrado para a televisão.


Não havia uma campanha contra a chanchada porque não havia mais um cinema “oficial” contra o qual lutar, como foi o caso na França, na Alemanha, na Itália e outros países. Daí é que, eu acho, nasce, um pouco, a megalomania inicial do Cinema Novo porque o inimigo direto é o cinema americano (ibid.).



Zelito Viana diz que, naquela época, “a gente, lamentavelmente, não via” nada de positivo na chanchada. “Hoje a gente tem consciência de que a chanchada era muito importante” (Viana, E, 1993). “O Cinema Novo não ajudou a destruir as chanchadas; todo mundo as adorava e o Cinema Novo acabou ficando muito ligado à chanchada” (Carneiro, E, 1993). Já Flávio Moreira da Costa vê na chanchada “uma tradição cultural, aí no sentido antropológico, brasileira: o carnaval, a festa, a festa como cultu­ra. Nesse sentido, ela expressou (...) muito o Rio de Janeiro, mais que o Brasil” (Costa, E, 1993). Walter Lima Jr. diz que Macunaíma e Terra em Transe integraram muita coisa da chanchada. Mas faz uma ressalva: “eu não tenho uma visão positiva sobre a chanchada” (Lima Jr., E. 1994).


A julgar pela maioria dos pontos de vista atuais desses cinemanovistas, o azar da chanchada foi o Cinema Novo ter surgido no momento em que o imaginário construído por ela ainda estava muito vivo na memória do público e das pessoas de cinema e, também, ter sido pega no fogo cruzado da batalha ideológica entre as elites brasileiras - burguesia e oligarquias x intelectuais de esquerda e setores nacionalistas. A radicalidade do momento não permitiu ao Cinema Novo perceber aspectos positivos contidos na chanchada, com isso não levando em conta os pontos de vista de dois dos seus mestres mais respeitados. Alex Viany dizia que “mesmo nos mais despretensiosos e desleixados filmusicais e chanchadas musicais poderão ser encontra­dos elementos valiosos para a formação do núcleo de um gênero popular-brasileiro capaz de agradar tanto aqui como no estrangeiro” (Viany, op.cit.:133-4). Em texto escrito nove anos depois e publicado na edição aqui em uso, ele volta ao tema alegando que


a chanchada serviu para provar que o filme brasileiro podia ser um bom negócio; pondo na tela trejeitos e o linguajar da gentinha do Rio de Janeiro, acabou por sua vez com a lenda (...) de que o brasileiro não sabia comportar-se defronte da câmera e de que a língua portu­guesa não se prestava aos diálogos cinematográficos. Entre 1944 e 1954, (...) Oscarito e Grande Otelo (...) estabeleceram um clima de intimidade com as pla­téias populares (ibid.:133-4).


Em artigo de 1959, Paulo Emílio Salles Gomes indaga “se o caminho certo não seria o exame mais cuidadoso da vitalidade sociológica da comédia carioca” (Salles Gomes, op.cit.: 44). Em outro texto, publicado quatorze anos depois, fora, portanto, dos debates calorosos da época, Paulo Emílio Salles Gomes vê um “marco” (Salles Gomes, 1980:91) importante no fenômeno chanchada devido à uma “produção ininterrupta durante cerca de vinte anos de filmes musicais e chanchadas (...) desvinculada do gosto do ocupante e contrária aos interesses estrangeiros” (ibid.) e à contribuição das “invenções cariocas efêmeras em matéria de anedota, maneira de dizer, julgar e se comportar” (ibid.).


[O] acordo que se estabelecia entre [a chanchada] e o espectador era um fato cultural incomparavelmente mais vivo do que o produzido até então pelo contato entre o brasileiro e o produto cultural norte-americano. Neste caso o envolvimento era inseparável da passividade consumidora ao passo que o público estabe­lecia com o musical e a chanchada laços de tamanha intimidade que sua participação adquiria elementos de criatividade (...). A adoção, pela plebe, do malandro, do pilantra, do desocupado da chanchada, sugeria uma polêmica de ocupado contra ocupante (ibid.:91-2).


A chanchada criticava de maneira sarcástica a xenofilia das elites brasileiras (Dias, 1993:33) e apresentava “um modelo ou um valor diferente daquele da elite letrada da época” (ibid.:35). Discorrendo sobre aquilo que Paulo Emílio Salles Gomes definiu como “intimidade” e “criatividade” do público, Rosângela de Oliveira Dias afirma que:


Os espectadores barulhentos das chanchadas estariam cri­ticando a forma sisuda e tradicional de assistir aos filmes. As chanchadas não eram assistidas de forma disciplinada e imóvel, comum à missa católica. A platéia não ficava quieta e bem comportada diante desse tipo de filme; transformava-se em artista, como na festa carnavalesca, ignorando a distinção entre atores e espectadores, colocando o “mundo ao revés” (ibid.:45).


Completando sua análise, esta autora pretende “mostrar que as chanchadas devolviam-nos o bagaço da cultura colonizadora devidamente mastigada e desnu­da, expondo através da sátira e do deboche as mazelas de nossas sociedade” (ibid.:10).


Sem querer ser exaustivo no levantamento dos filmes (12), os temas das chanchadas eram notícias de jornais (O homem do Sputnik, de Carlos Manga), políticos e pessoas famosas da época (Carnaval em Caxias, de Jorge Ileli e Paulo Wanderley, que parodia a figura de Tenório Cavalcanti (13), paródias de filmes de Hollywood (Nem Sansão nem Dalila, de Carlos Manga) e temas políticos (O petróleo é nosso, de Watson Macedo). A propósito de Nem sansão nem Dalila, Sérgio Augusto escreveu que se tratava de “uma promissora sátira à condição subalterna do cinema brasileiro (...) e também ao populismo, à demagogia, às alianças políticas espúrias e ao golpismo militar” (Augusto, 1989:134). Com relação a O homem do Sputnik, ele identificava críticas “[à] morosidade de nossas repartições públicas, [à] futilidade da alta burguesia, [à] cupidez das grandes potências, [aos] absurdos da guerra fria, [aos] concursos de miss (...)” (ibid.:144) e completa dizendo ainda que “a última chanchada da Altlândida digna de nota (O homem do Sputnik) foi, portanto, um exercício de esquizofrenia: uma sátira ao poder americano, usando as mesmas armas de sedução e manipulação da comédia clássica americana” (ibid.).


Por último há ainda o carnaval, elemento do qual a chanchada é quase um sinônimo e ao qual o Cinema Novo quase não deu importância, ignorando Oswald Andrade, que reconheceu a importância do carnaval para a cultura brasileira ao afirmar que “o carnaval do Rio é o acontecimento religioso da raça” (Andrade, 1978:5). “As chanchadas ao carnavalizarem a sociedade tornam-se um ritual carnavalesco que procura colocar o mundo às avessas” (Dias, op.cit.:44). A estrutura da chanchada era semelhante a do carnaval. Inversões ocorriam a toda hora: nobres em plebeus, ricos em pobres, homens em mulheres etc. Os filmes sempre acabavam em festa. O Cinema Novo pouco considerou esta particularidade. O carnaval é até hoje a principal forma espontânea de organização e representação popular. No entanto, como já dissemos antes, o reconhecimento da manifestação popular, não estava na ordem do dia das esquerdas de então. O povo tinha que ser submetido a um projeto específico de tomada de poder feito para ele pelas elites intelectuais de esquerda. Desta forma, muitos elementos importantes da cultura popular foram relegados a um segundo plano.



4 - Do isolamento e da consagração.



Ao criticar a chanchada e afastar-se do público cultivado por ela, o Cinema Novo relegou-se a um enorme isolamento. Dessolidarizando-se de sua classe de origem, criticando-a pela sua xenofilia e identificação com a cultura norte-americana e européia, esses quadros perderam o apoio que essa poderia lhes dar. Em contrapartida, o “ocupado” - o povo - não se sentia representado por esses jovens que só se dirigiam a ele para mostrar-lhe o quanto agia erradamente. Isso criou um enorme problema de comunicação e relacionamento. O público, que era basicamente urbano, não ia ver os filmes do Cinema Novo (14). Nos anos 50 e 60 existiam enormes continentes populacionais no campo que jamais tinham tido acesso a qualquer tipo de imagem em movimento. O camponês dificilmente ia ver um filme, brasileiro ou não, devido as suas condições materiais de existência e à dificuldade de se levar o aparato exibidor (projetores, filmes etc.) até ele. A burguesia e a classe média não viam porque não gostavam da imagem do Brasil que lhes era mostrada. Quanto à relação entre o Cinema Novo e os operários Maurice Capovilla contou-nos uma estória interessante: entre 1961 e 1962, a Cinemateca Brasileira montou um cine-clube dentro do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de São Paulo. Aí foram passados diversos clássicos do cinema mundial, que contaram com uma ínfima presença de público. No entanto, quando foi exibido, num desses programas, o filme Zuyderzee, de Joris Ivens - que mostra o processo de construção de um enorme dique na Holanda -, houve uma grande afluência de público e o filme foi exibido diversas vezes naquele dia. Maurice Capovilla, que era o programador desses filmes e homem de ligação da Cinemateca com esse sindicato, afirma que isso ocorreu porque “o filme tinha a ver com a vida deles, que, afinal, eram operários da construção civil” (Capovilla, E, 1993). Na maioria das vezes, o operário não via os filmes do Cinema Novo porque tratavam de temas que não lhes despertavam interesse.


Apenas os estudantes e os intelectuais que compartilhavam da mesma cultura política que os realizadores iam ver os filmes. Fica caracterizado, assim, um movimento endógeno retroalimentado.


Embora isolado internamente, o movimento ganhou legitimidade no exterior, através da conquista de novos públicos e novos mercados que puderam assegurar-lhe que estava no caminho certo. Os diretores do Cinema Novo exibiram seus filmes em importantes festivais internacionais e ganharam vários prêmios. Este reconhecimento externo gerou algumas conseqüências. A primeira foi uma maior receptividade pela classe média brasileira que, por ser xenófila (como a chanchada já havia identificado e parodiado), passou a olhar esses filmes com um pouco mais de condescendência, já que agora eles tinham o aval dos intelectuais e artistas dos países desenvolvidos. Em segundo lugar, causou uma certa perplexidade aos cinemanovistas, pois embora tenha havido um reconhecimento maior do seu trabalho, isso não foi suficiente para garantir-lhes uma fatia maior do mercado exibidor brasileiro. Esta era a questão fundamental: sem acesso ao grande público não seria possível combater o imperialismo e o colonialismo cultural; não seria possível criar o novo homem brasileiro; não seria possível desalienar o povo. Das propostas fundamentais do movimento, uma das poucas que pôde ser posta em prática, e que garantiu seu reconhecimento externo, foi a busca de uma forma nova e revolucionária. Isso não depende do público e passa por uma postura particular do realizador.


Daí advém uma terceira conseqüência: a endogenia do movimento. Os únicos que compreendiam suas propostas e objetivos, em sua totalidade e complexidade, eram os próprios cinemanovistas ou aqueles setores identificados com eles. Assim, criou-se um processo de isolamento do público, muito embora desejassem intensamente alcançá-lo. Num texto de 1972, Cacá Diegues afirma que:


Durante muitos anos, tentamos construir o mundo através do cinema. Não foi possível. De raiva, resolvemos destruí-lo. E ele, nem te ligo, continuou igualzi­nho. Aí botamos o mundo entre parênteses e inventamos outro de brincadeira. Um gueto onde nada de fora pudesse entrar para perturbar o brinquedo. (Diegues, 1988:11).


Neste ponto, isolado, o Cinema Novo volta-se para o Estado a procura de um novo espaço que o movimento pudesse ocupar para tentar manter-se vivo. Tal como as gerações de intelectuais que os precederam, os cinemanovistas almejavam não só participar das elaborações das políticas estatais, como tomar o aparelho estatal. A partir do golpe militar, esta segunda hipótese mostrou-se muito remota, mas eles não desistiram da primeira (Ramos, 1983). Do Estado, o Cinema Novo esperava, entre outras coisas, leis que lhe garantissem o acesso ao circuito exibidor e facilidades para a produção. Essa foi a maneira encontrada para combater o cinema norte-americano e tentar abocanhar uma fatia maior do mercado. Após o golpe de 1964, o movimento viu-se obrigado a buscar apoio no Estado autoritário que censurava suas produções e dificultava, não só a exibição, mas ainda a exportação dos filmes.


Um dos seus principais aliados estatais foi a Comissão de Apoio à Indústria Cinematográfica (CAIC) criada em 1963 no antigo estado da Guanabara pelo governo Carlos Lacerda (15). Para Paulo César Saraceni esta “foi, de longe, a melhor ajuda governamental que o cinema brasileiro teve em toda a sua trajetória” (Saraceni, 1993: 162). A CAIC buscava criar as condições e mecanismos para incentivar o surgimento de uma indústria cinematográfica brasileira. O decreto que a criou, “trazia em seu corpo, de forma clara e explícita, regras que definiam um controle ideológico para a produção” (Ramos, op.cit.: 32). Contudo, essa vigilância ideológica não se mostrou, na prática, tão rígida assim. Vários filmes que contaram com a ajuda dessa comissão eram filmes que foram considerados “esquerdistas” e mesmo, posteriormente, censurados pelas autoridades do golpe militar de 1 de abril.


Entre os filmes produzidos com dinheiro da CAIC podemos citar, entre outros, O desafio, de Paulo César Saraceni, O padre e a moça, de Joaquim Pedro de Andrade, A hora e a vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos, Menino de engenho, de Walter Lima Jr. (ibid.:171). Além disso, premiou Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, Garrinhcha, alegria do povo, de Joaquim Pedro de Andrade e Porto das Caixas, de Paulo César Saraceni.


Este relacionamento com o Estado pode ser encarado como um reconhecimento, por parte desse, de que os cinemanovistas conseguiram afirmar-se enquanto uma elite intelectual legítima, digna interlocutora do Estado e dos setores conservadores. Isto vem corroborar aquilo que Philippe Bradfer chama de “crença” popularmente difundida, segundo a qual “aquele que, através de sua atividade intelectual (...) adquire um certo prestígio, possui, um julgamento abalizado das questões políticas (Bradfer, 1992: 47). Nunca os cineastas brasileiros alcançaram tanto respeito e foram ouvidos tão amplamente por setores importantes sociedade brasileira quanto neste período.



5 - Ganhos e perdas.



Em quatorze anos (1950/1964) formou-se no Brasil, mais intensamente no Rio de Janeiro, uma geração cinematográfica. Oriunda, em sua maioria, dos meios universitários, dedicou-se à crítica, à teoria cinematográfica e à produção de filmes, na bitola que fosse possível. Desde o início era possível perceber-se em suas discussões uma enorme vontade de “botar a mão na massa”, de produzir filmes compromissados com a realidade cultural brasileira. Esse grupo utilizou todas as armas disponíveis para alcançar seu intento. Sua grande união em torno de princípios gerais - não se pode falar de um programa de ação devido à grande heterogeneidade entre membros que compunham esse grupo - foi fundamental para o enfrentamento dos “inimigos”, fossem eles parcelas da crítica nacional de cinema encasteladas na grande imprensa ou representantes de um modelo de cinema que produzia os filmes brasileiros de então: chanchadas e produções da Vera Cruz.


As críticas à Vera Cruz e à chanchada funcionaram como um instrumento de retórica utilizado para marcar posição contra tudo o que fôra feito em cinema no Brasil até então e para definir as linhas gerais que todos do Cinema Novo deveriam seguir.


Nesses quatorze anos os cinemanovistas conseguiram criar um movimento que contou com uma produção intelectual (livros, artigos etc.) e cinematográfica constante. Obtiveram sucesso de crítica e conseguiram incluir a cinematografia brasileira entre as mais importantes do mundo. Também foram reconhecidos como um grupo social com voz ativa e com cacife para se tornar um importante interlocutor do governo e de setores da burguesia brasileira.


Outro sucesso do Cinema Novo foi criar uma incipiente indústria cinematográfica no país. Laboratórios cinematográficos foram montados ou modernizados; formou-se uma mão de obra especializada, ainda que pequena, baseada numa autodidática de grupo (os cinemanovistas praticavam o que liam nos livros enquanto faziam seus filmes, uns ajudando os outros). Órgãos e instituições financeiras, estatais ou privadas, que davam ajuda ao desenvolvimento da indústria cinematográfica no Brasil surgiram graças às pressões e às articulações políticas desse grupo junto a setores sociais influentes.


Outra vitória foi o desenvolvimento de uma linha de pesquisa de linguagem cinematográfica que passou a influenciar, positiva ou negativamente, toda a produção cinematográfica feita no Brasil após os anos 60. Segundo David Neves, influenciou até os jovens cineastas alemães desse mesmo período (Neves, E, 1993).


Entretanto, alguns fatores prejudicaram o desenvolvimento do Cinema Novo. O primeiro foi não ter conseguido desvencilhar-se da velha tradição messiânica do intelectual nacionalista brasileiro que encara o povo como algo sem vontade própria e que deve ser conduzido até a sua salvação. O Cinema Novo também se colocou como o dono da verdade, como aquele que tinha as melhores propostas para o país, porque fruto de um elaborado raciocínio intelectual, e as propostas mais sinceras, porque autenticamente populares e nacionalistas. O povo era apenas um elemento a ser moldado ou, como se dizia na época, conscientizado.


O segundo fator prejudicial foi não ter elaborado uma política de distribuição para seu produto. Esse erro é tão mais importante porque foi o mesmo cometido pela Vera Cruz e que já fôra diagnosticado por Alex Viany, um dos críticos e diretores de cinema mais respeitados pelos cinemanovistas. Só depois, por volta de 1965, é que eles se preocuparam de fato com esse problema e criaram a distribuidora de filmes Difilm que, entretanto, teve vida curta.


Um terceiro fator foi o grupo ter encarado o grande público de uma maneira “preconceituosa”. Embora os cinemanovistas tenham criado um pequeno público próprio através dos cine-clubes, o grande público lhes permaneceu inacessível, até este período, pelo menos. Muito por sua própria culpa já que se esqueceram, também, de traçar uma política de atração de espectadores. Isso pode ser encarado como uma outra influência da sua atuação messiânica: o povo deveria, apenas, fornecer os elementos primários básicos que seriam retrabalhados por esses artistas. Com isso, sua relação com o público tornou-se uma rua de mão única onde não havia trocas e interações entre os cinemanovistas e o povo. Foi um relacionamento viciado. Intelectuais “bondosos” faziam filmes para o povo, a quem só restava aceitá-los, ou não. Se o grande público não gostasse dos filmes, o problema não estava na linguagem, nem na estrutura de produção, distribuição e exibição, mas na pouca conscientização política e no ínfimo desenvolvimento cultural dos espectadores.


Houve uma querela entre Flávio Moreira da Costa e David Neves, narrada pelo primeiro, que ilustra bem essa dificuldade de relacionamento entre o Cinema Novo e o público. Em um dos capítulos do seu livro, David Neves afirma que o grande problema do Cinema Novo é o público (Neves, 1966). Flávio Moreira da Costa retruca dizendo que era o contrário: o problema seria a conquista desse público (Costa, E, 1993). De qualquer maneira, houve, de fato, uma grande lacuna entre o Cinema Novo o público brasileiro.



[1] Jean-Paul Sartre, citado por Daniel Pécaut (Pécaut, 1990:5).


2 Sobre este tema, remetemos, entre várias outras obras, a Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (Cardoso e Faletto, 1984), Celso Furtado (Furtado, 1967), Hélio Jaguaribe (Jaguaribe, 1962 e 1967) e Maria da Conceição Tavares (Tavares, 1982).


3 Para um apanhado geral dessas teses, remetemos ao número especial sobre o Brasil da revista Les temps modernes (número 257, outubro de 1967).


4 Simon Schwartzman, citado por Daniel Pécaut (Pécaut, op.cit.:109).


5 Para maiores esclarecimentos, remetemos, entre outros, a Hélio Jaguaribe (Jaguaribe, 1979), Daniel Pécaut (Pécaut, op.cit.), Nelson Werneck Sodré (Sodré, 1978) e Caio Navarro de Toledo (Toledo, 1978).


6 Para maiores dados sobre o CPC ver, entre vários outros, Heloisa Buarque de Hollanda (Buarque de Hollanda, 1981) e Renato Ortiz (Ortiz, 1986).


7 Frantz Fanon, citado por Ismail Xavier (Xavier, 1983:154).


8 Entrevista de Débora Zampari, esposa de Franco Zampari, fundador da Vera Cruz, à Maria Rita Galvão (Galvão, 1981).


9 Para maiores informações sobre a Vera Cruz, remetemos Alberto Cavalcanti (Cavalcanti, 1976), à obra fundamental de Maria Rita Galvão (Galvão, 1981), a Alex Viany (Viany, 1987) e a Glauber Rocha (Rocha, 1963).


10 As citações onde aparecem o sobrenome, a letra E maiúscula e o ano referem-se a entrevistas realizadas pelo autor.


11 Cf. Sérgio Augusto (Augusto, 1989) e Rosângela de Oliveira Dias (Dias, 1993).


12 Para um maior aprofundamento no tema chanchada, remetemos, entre inúmeras outras obras, àquelas de Rosângela de Oliveira Dias (Dias, op.cit.), que pode indicar extensa bibliografia, e Sérgio Augusto (Augusto, 1989), que contém a ficha técnica de todos os filmes.


13 Político populista que, acompanhado sempre de sua metralhadora de “estimação” (a “Lurdinha”) a tiracolo, mandava na Baixada Fluminense, principalmente em Duque de Caxias, dos anos 50 até o golpe militar.


14 Para uma apreciação da composição demográfica e do público de cinema no Brasil dos anos 50 e 60, remetemos, entre outros, à Rosângela de Oliveira Dias (Dias, op.cit.).


15 Para maiores informações sobre a CAIC, ver, entre outros, David Neves (Neves, 1963), José Mário Ortiz Ramos (Ramos, 1983) e Paulo César Saraceni (Saraceni, 1993).




Bibliografia


A) LIVROS SOBRE CINEMA:


BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967a.


_____.Cinema brasileiro: propostas para uma história. Rio de Janeiro Terra, 1979.


_____.Le cinéma novo. In: Les Temps Modernes, No 257, octobre 1967b.


CAVALCANTI, Alberto. Filme e realidade. Rio de Janeiro: Artenova/EMBRAFILME, 1976.


COSTA, Flavio Moreira et alii. Cinema moderno/Cinema Novo. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1966.


DIAS, Rosângela de Oliveira. O mundo como chanchada: cinema e imaginário das classes populares na década de 50. Rio de Janeiro:Relume-Dumará, 1993.


DIEGUES,Carlos. Cinema brasileiro: idéias e imagens. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS/MEC/SESu/PROED, 1988.


FABRIS, Mariarosaria. Nelson Pereira dos Santos: um olhar neo-realista? SP: EDUSP, 1994.


GALVÃO, Maria Rita. Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/EMBRAFILME, 1981.


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HENNEBELLE, Guy. Os cinemas nacionais contra Hollywood. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.


NEVES, David E. Cinema Novo no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1966.


RAMOS, Fernão (org.). História do cinema brasileiro. SãoPaulo: Art Editora, 1987.


RAMOS, José Mário Ortiz. Cinema, estado e lutas culturais: anos 50, 60, 70. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.


ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.


_____. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro:Alhambra/EMBRAFILME, 1981.


SALLES GOMES, Paulo Emílio. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro:Paz e Terra/EMBRAFILME, 1980.


_____.Crítica no suplemento literário, (volumes 1 e 2). Rio de Janeiro: Paz e Terra/EMBRAFILME, 1981.


_____.Humberto Mauro. Cataguazes, Cinearte. São Paulo: Perspectiva, 1974.


SANTOS, Nelson Pereira dos, ROCHA, Glauber & VIANY, Alex. Cinema Novo: origens, ambições e perspectivas. In: Revista Civilização Brasileira, Nº 1, março,1965.


SARACENI, Paulo César. Por dentro do Cinema Novo: minha viagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.


VIANY, Alex. ntrodução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Alhambra/EMBRAFILME, 1987.


XAVIER, Ismail. Alegorias do desengano: a resposta do Cinema Novo à modernização conservadora, tese de Livre-docência, ECA/USP, 1989.



B) DIVERSOS:


BRADFER, Philippe. Structures de sociabilité des intellectuels et normes de conduite politique. In:Les Cahiers de l'IHTP, Nº 20, março, 1992.


BUARQUE DE HOLLANDA, Heloisa. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde - 1960/1970 (2a edição). SãoPaulo: Brasiliense, 1981.


CARDOSO, Fernando Henrique e FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina (7a edição). Rio de Janeiro: Zahar, 1984.


FURTADO, Celso. De l'oligarchie à l'Etat Militaire. In: Les Temps Modernes, Nº 257, octobre 1967.


GULLAR, Ferreira. Vanguarda e sub-desenvolvimento: ensaios sobre arte (3a edição). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.


JAGUARIBE, Hélio. Le colonial fascisme. In:Les Temps Modernes, Nº 257, octobre, 1967.


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_____.Iseb, um breve depoimento e uma reapreciação crítica. In: Cadernos de Opinião, Nº 14, outubro/novembro, 1979.


MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933/1974). São Paulo: Editora Ática, 1977.


ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade social (2a edição). São Paulo: Brasiliense, 1986.


PECAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a Nação. São Paulo: Editora Ática, 1990.


SCHWARZ, Roberto. Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.


SODRÉ, Nelson Werneck. A verdade sobre o Iseb. Rio de Janeiro: Avenir, 1978.


_____.Síntese da história da cultura brasileira (11a edição). SãoPaulo: Difel, 1983.


TAVARES, Maria da Conceição. Da substituição das importações ao capitalismo financeiro (10a edição). Rio de Janeiro: Zahar, 1982.


TOLEDO, Caio Navarro. Iseb: fábrica de ideologias. São Paulo: Ática, 1978.



C) ENTREVISTAS (em ordem cronológica):


COSTA, Flávio Moreira da - 01/02/1993.


CARNEIRO, Mário - 05/03/1993.


COUTINHO, Eduardo - 07/05/1993.


VIANNA, Zelito - 16/08/1993.


NEVES, David - 06/10 1993.


SARACENI, Paulo César - 06/10/1993.


DIEGUES, Carlos (Cacá) - 30/11/1993.


CAPOVILLA, Maurice - 22/12/1993.


LIMA JUNIOR, Walter - 09/02/1994.



Resumo: este artigo procura investigar a cultura política brasileira e, principalmente, do Rio de Janeiro sob a qual se formou a geração que participou do movimento político-cultural conhecido como Cinema Novo, cujos principais elementos podem ser percebidos nas obras desse movimento.

domingo, 9 de agosto de 2009

UMA CEGUEIRA LUMINOSA

Por André Setaro

O grande problema de Ensaio sobre a cegueira reside na complicada "transfer" de uma obra literária para o cinema. Já se disse que o romance filmado é uma utopia, porque a literatura tem uma linguagem (os signos gráficos) e o cinema, outra (os signos icônicos). Geralmente, quando um realizador faz uma versão de um livro para a linguagem cinematográfica somente aproveita a trama, os personagens e as situações. O que faz o valor de uma obra literária é o estilo de escritor, a maneira pela qual ele manipula a sintaxe de sua linguagem. O mesmo pode ser aplicado ao cinema. O que faz o valor de uma obra cinematográfica é a maneira pela qual o cineasta articula os elementos de sua linguagem em função da explicitação temática.




Hitchcock disse a Truffaut, na célebre entrevista imortalizada em livro, que não gostava de adaptar livros famosos para o cinema, dando preferência a escritos desconhecidos publicados em magazines. Porque, disse o mestre inventor de fórmulas, caso quisesse, por exemplo, adaptar Crime e castigo, de Dostoievsky, o filme teria, para conter tudo, uma duração excessiva e impraticável de mais de 200 horas.


Quantos crimes já não se cometeram contra escritores famosos pela teimosia em adaptá-los para as telas? Recentemente, o Canal Brasil exibiu Capitu, versão cinematográfica de Dom Casmurro "praticada" por Paulo César Saraceni, cujo resultado é um massacre completo na poética de Machado de Assis. E o pior de tudo é que o roteiro foi escrito pelo renomado crítico e escritor Paulo Emílio Salles Gomes e sua esposa, na época, Lygia Fagundes Telles. O que se vê na tela é algo deplorável, e Machado, se pudesse, sob a terra que lhe foi leve, tomar conhecimento do "assassinato", remexer-se-ia convulsivamente em seu túmulo

Como definiu com propriedade o crítico Carlos Alberto Mattos no site "Críticos.Com", o que falta a Ensaio sobre a cegueira é a "dicção" de José Saramago, porque Fernando Meirelles somente aproveitou a trama, os personagens, as situações. E o mais importante se encontra nas reflexões feitas pela sintaxe posta em prática pelo escritor português detentor de um Prêmio Nobel de Literatura.

É o caso de se perguntar: onde está o estilo de Saramago em Ensaio sobre a cegueira? Em lugar nenhum da narrativa do filme de Meirelles, que procura disfarçar este "vácuo" pela diversidade de luzes e cores e pela matiz da fotografia, por um certo virtuosismo nas "tomadas de vistas". Se Saramago é revelador em sua fábula escrita, esta mesma fábula, "transcrita" nas imagens em movimento, não alcança a dimensão do livro. No cinema, Blindness fica apenas como um pálido reflexo deste, ainda que uma produção bem cuidada e com bons intérpretes, além da habitual competência artesanal de Fernando Meirelles.

O romance aborda o surgimento de uma praga repentina numa cidade indeterminada, que se manifesta pela cegueira desenfreada em todos os seus habitantes. Enquanto os afetados pela epidemia são colocados em quarentena, em condições desumanas, e os serviços estatais começam a falhar, a trama segue a mulher de um médico, a única pessoa que não é afetada pela doença que cega todos os outros. E esta mulher é interpretada por Julianne Moore. Mais do que olhar, diz Saramago, é preciso reparar nos outros.

Meirelles captou Saramago e o "traduz" por meio de uma outra linguagem, obscurecendo, com isso, o que há de fundamental na obra escrita, qual seja a sua própria escrita ou o modo pelo qual Saramago desenvolve a fábula sintaticamente na língua portuguesa. Mas ainda que o romance filmado seja uma utopia, há casos em que a "escrita" literária se adapta à "escrita" cinematográfica, como foi o caso de Vidas secas, de Graciliano Ramos, que, filmado por Nelson Pereira dos Santos, o filme como que se "ajusta" aos predicados do livro. Também, é bom observar, o romance do autor de São Bernardo é quase um roteiro, pois se presta muito à pré-visualização. Não é o caso, contudo, de Ensaio sobre a cegueira, onde se encontra um modo "escritural" impenetrável, bem ao gosto do Nobel de Literatura, cujos livros são difíceis de penetrar, possuidores de uma "fluência" que perturba e instiga o leitor

Os recursos para "driblar" a ausência do estilo de Saramago (o mesmo aconteceu com a versão de O nome da rosa, de Umberto Eco, cuja versão não oferece os sábios ensinamentos deste sobre a Idade Média, sendo o filme transformado num "thriller" medieval, com "gosto" e "cheiro" da Idade retratada), e, em decorrência, da impotência do cinema em fazer uma transferência satisfatória, estão na eficiência da iluminação de César Charlone e na montagem ajustada de Daniel Rezende, e na "procissão" de intérpretes vindos de diferentes partes do mundo: Julianne Moore, Mark Ruffalo, Alice Braga (sobrinha de "Gabriela"), Don McKellar (o roteirista do filme que faz o ladrão de carro), Danny Glover, Gael Garcia Bernal, Douglas Silva, Antonio Fragoso, entre outros

Vino do cinema publicitário, Meirelles tem uma dinâmica para o desenvolvimento narrativo, que se estabelece mais na noção do corte que alavanca este do que no sentido de um "conceito de duração" dos planos mais aprimorados. Seu cinema, portanto, atende às solicitações da "velocidade" que é requerida das obras contemporâneas. Cidade de Deus (2002) é o paradigma dessa dinâmica, desenvolvida também em O jardineiro fiel (The constant garden, 2005). Em 1998, tentou revitalizar o filme infantil com O menino maluquinho 2: a aventura, com roteiro da parceira de Walter Salles, Daniela Thomas. Mas a "construção" do cineasta, ainda que de forma indefinida, se dá com Domésticas (2001).

Sentado ao lado de Meirelles durante a projeção em Cannes de Ensaio sobre a cegueira, José Saramago, emocionando o diretor, disse a ele que gostou muito do filme. Mas o próprio Meirelles, insatisfeito com o resultado, com a narração redundante, modificou o filme depois para lançá-lo comercialmente.

O cinema ainda está sem créditos com José Saramago. E talvez fique para sempre, pois impenetrável nos seus signos gráficos, é muito difícil que o discurso cinematográfico, icônico por natureza, lhe esteja à altura. O artesanato de Fernando Meirelles não consegue atingir a fabulação da obra literária, a resultar num filme difuso, cuja luz tenta fazer "ver" o que os cegos não podem "olhar".

sábado, 25 de julho de 2009

DOIS MARCOS DA CRIATIVIDADE CINEMATOGRÁFICA BAIANA

Beto Magno

Os mais críticos diriam que a Bahia e o mundo, passados 40 ou 20 anos, continuam os mesmos. Razoável ou não, a afirmação se confirma em dois dos maiores filmes baianos, clássicos incontestáveis do cinema underground . Meteorango Kid - O Herói Intergalático (André Luiz Oliveira, 1969) e Superoutro (Edgar Navarro, 1989), realizados há respectivamente quatro e duas décadas, continuam muito atuais.

As duas fitas tratam dos dramas de dois personagens perdidos diante de suas épocas e ilusões, que se desfacelam à sua frente sob o aspecto de inadequação no mundo e os transformam em impecáveis anti-heróis. O louco vivido magistralmente por Bertrand Duarte e sua tentativa alucinada de compreensão do mundo que de aventura em desventura desemboca na tentativa de voar ; o alienado Lula, jovem de família burguesa que faz da sua inconsequência válvula de escape e contraponto à hipocrisia ao seu redor, finalizando com a metáfora da negação de sua pomposa festa surpresa de aniversário.

Desde o primeiro, o Brasil viveu uma ditadura militar, a juventude testou os limites dos costumes, a tecnologia saltou com sua força andróide. O óbvio seria pensar, ao imaginar um olhar que de fora observasse, que este encontraria uma outra sociedade e, alma dela, outros jovens, outros ideais. Ao assistir os dois filmes, porém, fica a lacuna: o que mudou desde então nos discursos, nas ações, nas brigas e anseios dos jovens? Não é uma pergunta fácil, mas é possível arriscar com grande chance de acerto

Pouca coisa mudou. Com o decréscimo, porém, que não há uma ditadura militar, como em 1969, e nem o fim dela, em 1989, amplificando os significados. De uma incipiente estética pop, estilizando o trash e bradando discursos em letreiros/outdoors, câmera inquieta, montagem rápida e som caótico, até mesmo tecnicamente os ideais parecem os mesmos. Mas eles fizeram há tanto tempo…
E o que dizer então da falta de recursos? Hoje, não sem certa razão, jovens cineastas usam a falta de apoio como desculpa para a falta de produção. Mas e a falta de criatividade? E o peito para ser marginal e vencer a barreira do dinheiro? E a criatividade não seria a forma mais eficiente e original de vencer essas limitações?
Não se vê hoje, no cinema baiano, filmes que tenham potência e fôlego para serem lembrados daqui a 40 ou 20 anos além do retrato estático de uma época, e nem vale a pena falar deles, basta conferir com seus próprios olhos. Superoutro e Meteorango Kid, ao contrário, continuam em movimento, assim como os Novos Baianos, parte da trilha de Meteorango (com músicas de Morais Moreira e Paulinho Boca de Cantor) e toda a música e cultura tropicalista, revisitada com afinco pela juventude atual.

Talvez porque pouca coisa tenha mudado realmente. Hoje não se produz nada tão forte, e a molecada tinha mesmo bala na agulha e coragem de ser marginal, outsider, rebelde. Coragem de peitar os seus tempos e incongruências.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

A EVOLUÇÃO DA LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA

BETO MAGNO E VITÓRIA MAGNO

Da câmara fixa, parada, dos tempos dos Irmãos Lumiére e de George Méliés, passando pela sistematização da linguagem cinematográfica com David Wark Griffith (O nascimento de uma nação, 1914, Intolerância, 1916), o cinema, que completou o seu centenário em 1995, sofreu, na sua trajetória, várias transformações em seu estatuto da narração. Do reinado da arte muda, quando se pensou o cinema ter alcançado a sua essência como linguagem, passando pela introdução do som - que, inegavelmente, modificou a arte do filme, a linguagem cinematográfica recebeu, na sua trajetória, influências da tecnologia, incorporando seus avanços. As inovações tecnológicas favoreceram a ruptura dos esquemas tradicionais (produtivos e expressivos) e a difusão de usos do cinema que, anteriormente, tinham sidos feitos só em caráter excepcional (as vanguardas históricas e certos momentos heróicos do neorrealismo).Incorporando os avanços tecnológicos, o cinema conseguiu sair da supremacia da montagem para a profundidade de campo - a invenção das objetivas com foco curto permitiram a um Welles a ousadia de uma renovação estética em Cidadão Kane, ponto de partida da linguagem do cinema moderno. A profundidade de campo permitiu a utilização de filmagens contínuas sem a excessiva fragmentação da montagem anterior. Com a profundidade de campo,anuncia-se, uma década depois, a eclosão do modelo de Michelangelo Antonioni que, com sua trilogia A aventura - A noite - O eclipse deu ao cinema uma nova maneira de pensar e um estilo de representar.

O fracionamento deu lugar a demoradas incursões da câmera dentro da tomada, permitindo, com isso, maior poder de captar a alma humana nos seus devaneios e nas suas angústias como, também, com Roberto Rossellini, assaltar com a câmera o momento histórico, o instante real. A instalação da película pancromática (aquela dotada de maior sensibilidade) e a difusão de câmeras mais fáceis de manobrar mudaram a face do cinema e foram fatores que contribuíram para o advento do chamado cinema moderno. A câmera na mão, que veio a facilitar a apreensão da realidade, surgindo o cinema-verité, é uma conseqüência da tecnologia. A película pancromática, por mais sensível, fez com que os realizadores saíssem dos estúdios fechados e se intrometessem, com suas câmeras, nos exteriores mais recônditos, descobrindo, com isso, um cinema mais verdadeiro porque menos artificial. A tecnologia determinou uma evolução da linguagem cinematográfica?
Evidentemente que a tecnologia determina uma transformação da linguagem cinematográfica, ainda que não venha a provocar a revolução estética que se verificou quando da passagem do cinema mudo para o sonoro. A tecnologia encontra-se , por exemplo, hoje, tão evoluida, que provoca no espectador uma impressão de realidade antes impossível de ser verificada (os dinossauros de verdade dos filmes de Spielberg: O parque dos dinossauros e O mundo perdido). Tem-se a estética cinematográfica quando a técnica se conjuga com a linguagem , instaurando-se, aí, o ato criador.

Se o cinema nasceu em 28 de dezembro de 1895, com a projeção pública do cinematógrafo efetuada pelos Irmãos Lumiére, a linguagem cinematográfica somente veio a se consolidar, no entanto, vinte anos depois, em 1914/15 com O Nascimento de uma nação (The birth of a nation), de David Wark Griffith. Entre o seu nascimento e a consolidação de sua linguagem, o cinema passou por uma série de de gradações evolutivas, com o descobrimento, aos poucos,dos elementos determinantes de sua especificidade como linguagem sem língua. Um cinegrafista de Lumiére, Promio, andando numa gôndola em Viena, e observando o casario, inventou o travelling. Griffith em alguns curtas da Biograph ofereceu a expressão definitiva ao close-up. Edwin S. Porter, com sua narrativa ainda balbuciante, tenta a montagem e o enquanto isso que viria a desencadear um elo importante para a construção da linguagem cinematográfica.

O fato é que a linguagem fílmica nasce a partir do momento em que se constatou que a câmera podia sair do lugar, que podia se movimentar, mover-se, dando origem, com isso, à mudança do ângulo visual. Outra conquista importante veio com a constatação pelos ingleses da escola de Brighton de que, para contar uma história, é preciso inserir um primeiro plano, um close-up, dentro de um plano geral, nascendo, com isso, a montagem. O grande sistematizador, porém, é David Wark Griffith, o pai da linguagem cinematográfica sem a qual, aliás, o cinema não existiria como é hoje praticado.

O próprio Serguei Eisenstein deve muito a Griffith. Este, no frigir dos ovos, é muito mais importante do que o soviético, pois o grande criador, o inventor genial, o sistematizador preciso. Esta descontinuidade real do cinema e que se transforma numa impressão de continuidade, de fluxo contínuo, é resultado de uma abstração inconsciente da linguagem cinematográfica pelo espectador. Este, acostumado aos filmes, absorve os seus truques de linguagem, contando que esta não fuja da padronização à qual está acostumado. O que significa dizer: se, antes, para fazer que o público compreendesse que um personagem estava se lembrando do passado era preciso a utilização de fumacinhas e de diversos artifícios - nunca o corte direto presente/passado como num flash-back moderno, o cinema da contemporaneidade abdica de qualquer artifício no sentido explicativo.

Os lances de memória que tornaram incompreensível O ano passado em Marienbad (1961), de Alain Resnais, hoje estão sendo utilizados na publicidade televisiva. O puzzle proposto por Welles em Cidadão Kane é perfeitamente identificável em fitas desta suposta pós-modernidade.
Conta-se, entretanto, o caso de uma moça da Sibéria que, em visita a Moscou, julgou horrível o primeiro filme (uma comédia) que tinha visto em sua vida, porque "seres humanos eram despedaçados, as cabeças jogadas para um lado, os corpos para outro". Equando Griffith mostrou os primeiros close-ups em um cinema, e uma imensa cabeça decapitada sorriu para o público, houve pânico na platéia. Aliás, quando da primeira projeção do cinematógrafo dos Lumiére, em 1895, um trem que se dirigia à câmera determinou que algumas pessoas, ainda que a pequenez da tela, o preto-e-branco nem tão real assim, se escondessem assustadíssimas, debaixo das cadeiras - com medo de o trem sair da tela e esmagá-las. Em dois filmes de 1948, Laurence Olivier (Hamlet) e Alfred Hitchcock (Festim diabólico/Rope) eliminam o corte, substituindo a descontinuidade das imagens por uma circulação incessante da câmera, que soluciona a velha contradição entre cinema e teatro. Em Crises d'alma(Cronaca de un amore), Michelangelo Antonioni também renova a estrutura fílmica pela valorização da construção formal pelo movimento no interior de longas sequências e não mais pelo movimento de plano a plano.

Glauber Rocha também valoriza a construção formal pelo movimento no interior de longas sequências, ainda que Terra em transe seja filme de montagem sincopada, de planos curtos, com influência clara do cinema investigativo de Welles. A maioria dos filmes de Glauber Rocha, no entanto, revela um predomínio do plano-sequência - ao invés de ser dividida em cenas e diversos planos é feita numa única tomada. Isso levou Marcel Martin, ensaísta francês, a pensar numa transformação do cinema contemporâneo, transformação que começou com a desdramatização praticada por Michelangelo Antonioni, nos anos 50, e o aparecimento da câmera móvel que possibilitou o cinema-verité.

Segundo o grande Marcel Martin em seu fundamental A linguagem cinematográfica (Brasiliense, 1990): "O cineasta tende cada vez menos a decupar seu filme demaneira a destacar uma série unilinear e inequívoca de acontecimentos; já não sublinha por meio de montagem ou de movimentos de câmera aquilo sobre o que ele deseja fixar a atenção do espectador; a câmera não desempenha mais o seu papel habitual de nos dar o ponto de vista de uma testemunha virtual e privilegiada sobre todos os acontecimentos, facilitando, assim, o trabalho perceptivo e estimulando a preguiça intelectual do espectador (...) O abandono da linguagem concebida como conjunto de procedimentos de escrita ligados à técnica, tal como era praticada por Eisenstein ou Welles, é, portanto, acompanhada de uma rejeição do espetáculo, noção ligada à da direção (...) Passamos a um outro plano: o cinema de roteiristas cede espaço ao cinema de cineastas. O cinema não mais consiste essencialmente em contar uma história por meio de imagens, como outros o fazem por meio de palavras ou notas musicais: consiste na necessidade insubstituível da imagem, na preponderância absoluta da especificidade visual do filme sobre seu caráter de veículo intelectual ou literário.

Nos filmes decididamente "modernos", o espectador não mais tem a impressão de estar assistindo a um espetáculo inteiramente preparado, mas de estar sendo acolhido na intimidade do cineasta, de estar participando com ele da criação: diante desses rostos quese oferecem, desses personagens disponíveis, desses acontecimentos em plena constituição, desses pontos de interrogação dramáticos, o espectador conhece a angústia criadora."

Tempo e diegese
O paradoxo do tempo, segundo a Filosofia, reside na existência de dois passados: o passado que desapareceu e o passado que permanece como parte integrante do presente, gravado na memória e essencialmente criador. O passado que se encontra em cada um - qual uma madeleine a esperar a busca do tempo perdido. Tal paradoxo ganhou, no cinema, aspectos mais radicais. Nele, a noção de tempo é extremamente ambígua, porque não existe um único tempo, mas vários tempos mantendo entre si relações estreitas, e que só podem ser separados por uma operação do espírito.Distinguem-se, no filme: o tempo real (ou o tempo físico: duração cronométrica da projeção); o tempo psicológico (duração subjetiva da fábula narrada: um dia, meses, anos); e o tempo dramático (ou narrativo: tempo verbal em que transcorre a história/fábula: presente, passado ou futuro).Objetivamente, a rigor, o filme é um tributário do passado, mas de um passado que se refaz cada vez que o filme é projetado na tela. Mesmo que sua ação decorra no presente só existiu, esta ação, de fato, durante a filmagem, daí a aparente falsidade do presente cinematográfico, um presente virtual que, na realidade, é um passado.

Em 2001, Uma odisséia no espaço (2001: A space odyssey, 1968), de Stanley Kubrick, há, por meio de um corte direto, a passagem de milhares de anos, quando um grande macaco, levantando-se, joga, com força, um enorme osso para o ar e este osso, no corte, transforma-se numa nave espacial. Se a projeção de A família (La famiglia, 1987), de Ettore Scola, dura pouco mais de 130 minutos, seu tempo real, físico, o seu tempo dramático, narrativo, no entanto, compreende mais de 80 anos na vidade um velho senhor que, na Itália, constituiu grande família.Para estudar melhor o assunto, a filmologia - nova ciência que estuda a influência do filme sobre o espectador e estabelece as bases psicológicas que o aproximam ou afastam da ação desenrolada na tela - criou o termo diegese. A diegese refere-se a tudo que pertence, no processo intelectivo, à história contada no filme, ao mundo fabulístico sugerido ou pretendido pela ficçãocinematográfica. A diegese, portanto, abarca o mundo ficcional apresentado pelo filme e tudo o que esse mundo implica, se fosse tomado como verdadeiro.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

PAU BRASIL UM FILME DE FERNANDO BELENS




Mais um filme genuinamente baiano já está pronto e será exibido em avant-première no próximo dia 31 de julho no Teatro Castro Alves dentro da programação do Seminário de Cinema e Audiovisual (Semcine), às 20 horas e 30 minutos (em ponto?). Trata-se de Pau Brasil, de Fernando Belens, que ganhou um edital patrocinado pelo Governo do Estado, mas que tem também capital alemão na produção. Baseado em livro homônimo de Dinorah do Valle, premiado em concurso cubano da Casa de las Americas, Pau Brasil sofreu alguns contratempos quando do início de sua realização por causa de verbas que foram desviadas, mas encontrou apoio em Peter Przegodda, montador alemão de vários filmes de Win Wenders, que, com sua produtora, decidiu ajudar Belens. Przegodda é velho conhecido da Bahia, desde os tempos em que aqui esteve para dar um curso de cinema no já longíquo ano de 1976 (há, portanto, 33 anos).

Fernando Belens, conheço-o desde priscas eras, quando, ainda estudante de Medicina (é dublê de cineasta e psiquiatra), apresentava suas experiências radicais em Super 8 nas jornadas baianas. Sempre se caracterizou, desde as fitinhas desta bitola, por um humor insólito e uma estética inconformista. Do Super 8 passou para o 16mm e, como consequência, o 35mm e, agora, neste Pau Brasil, realiza o seu primeiro longa-metragem. Lembro-me bem do poético Anil, Heteros, a comédia (a intolerância heterossexual na história de um mestre que se transmuta em mulher), Pixaim (sobre os salões de beleza no Pelô e as transformações ocorridas no look das mulheres com o passar do tempo), Europa, França e Bahia, todas as experiências, e aquela do papagaio dilacerado, entre outros filmes de sua já extensa quilometragem pelo cinema baiano.

O roteiro, gestado desde 1987, só ficou pronto, segundo Belens, dois meses antes das filmagens. E trata de duas famílias, a de Joaquim e de Nives, que coexistem num pequeno povoado, perdido no coração do país, chamado Pau Brasil. Elas vivem frente a frente, com modos diferentes de ver a vida.“Numa casa mora uma mulher (personagem representada por Fernanda Paquelet) que transa com todos os caminhoneiros e tem um marido que é o marceneiro (Bertrand Duarte). Eles se gostam e esse amor, que ela tem demais e pode dar a outras pessoas, não é impedimento para o amor deles. Isso gera uma grande reação na outra família, que tem um pai falso moralista, que de noite assedia as filhas sexualmente”, relata Belens.

Para arrematar, os personagens são cercados por uma bruxa, “uma maga que transita nos enterros, nos velórios, na natureza... E são esses microplots (pequenas células narrativas) não conclusos e partidos para outros que, no final, deixam as coisas em aberto”.Sem época definida, o filme não segue a estrutura narrativa tradicional, de conflitos que se criam e se resolvem no decorrer da história.“São fragmentos de história. O filme transita por semicírculos, perguntas que não são respondidas, expectativas frustradas... É uma obra que pede a participação do espectador, para que complemente algumas coisas que, intencionalmente, foram deixadas em suspenso”.

sábado, 18 de julho de 2009

BERBERT DE CASTRO UM GRANDE SAMURAI


Beto Magno

Foi lançado nessa quarta-feira dia 15/07/09 no bar e restaurante extudo no Rio Vermelho, o curta "Cine Maracangalha" e o documentário sobre o saudoso "samurai" de Maracangalha e jornalista José Augosto Berbert de Castro, com presença de intelectuais, artistas, empresários e famíliares do homenageado, a festa foi amplamente divulgada pela imprensa baiana.

O curta é uma adaptação de uma das cronicas do livro omonimo de Berbert que a diretora da CAP Escola de Tv, a atriz e apresentadora de tv Rada Rezedá fez e dirigio com a participação de atores da sua Escola de tv.
Já o documentário BERBERT DE CASTRO UM GRANDE SAMURAI tem como objetivo homenagear o grande cronista de cinema e jornalista que nos deixou em julho do ano passado já no final das gravações. Tem duração de 35 mim e leva a assinatura dos diretores: Beto Magno, Chico Argueiro e Rada Rezedá

OSCAR SANTANA: HOMEM DE CINEMA


OSCAR SANTANA

Falar em Oscar Santana é falar de cinema baiano, pois um pioneiro como Roberto Pires, Rex Schindler, Braga Neto, Luis Paulino dos Santos... Se o cinema baiano tem seus primórdios e a presença de Alexandre Robatto Filho, dominando a cena nos anos 30 e 40, é, porém, a partir dos meados do decurso dos 50 que se começa a pensar na constituição de uma cinematografia, com o curta Um Dia na Rampa, de Luis Paulino dos Santos, e as experiências de Roberto Pires (O Calcanhar de Aquiles, entre outros), que, trabalhando na ótica de seu pai, conseguiu inventar uma lente cinemascope que denominou de igluscope – referência e homenagem à empresa cinematográfica Iglu Filmes – com a qual filmou Redenção a partir de 1956 – e que somente ficou pronto três anos depois, em 1959. Oscar Santana trabalhou junto com Pires nesse filme pioneiro, que abriu os olhos de outras pessoas interessadas em cinema na Bahia, porque Redenção, em cartaz no Guarany, era uma realidade.

Redenção foi deflagrador do chamado Ciclo Bahiano de Cinema, que apareceu entre 1959 e 1963, quando se estabeleceu uma efervescência criadora com a proliferação de vários longas-metragens, chegando mesmo o historiador francês Georges Sadoul a escrever em Les Lettres Francaises que a Bahia era a “Meca do cinema brasileiro” Oscar Santana estava presente em tudo e, porque homem de mil instrumentos, muito ajudou a consolidar este período único na história do cinema bahiano, participando como assistente, ator e diretor de seus próprios filmes. Lembro-me dele fazendo um falso aleijado em A Grande Feira (1961), de Roberto Pires.

Oscar Santana também é pioneiro no cinejornalismo, criando, com outros, A Bahia na Tela, na época em que as “atualidades” eram imprescindíveis como complementos nacionais antes do longa-metragem. Mas a grande façanha de Oscar Santana foi ter sobrevivido à derrocada do Ciclo – que acabou por causa da dificuldade de vencer a barreira da distribuição mesmo em território nacional: o capital investido não retornava. Criando a Sani Filmes, continuou – e continua – a fazer cinema até hoje. Levou, por muitas décadas, sendo o único empresário baiano bem sucedido na área de cinema, com documentários premiados pelo apuro técnico, alto grau de carpintaria e artesania.

O Ciclo Bahiano de Cinema surgiu como reflexo de um momento histórico altamente favorável, quando em Salvador havia um movimento muito grande em torno das artes. Era o período JK no qual os artistas estavam entusiasmados. Com o Ciclo, tentou-se criar, aqui, uma indústria de cinema, com continuidade na realização de filmes. Assim, apareceram produtores como Rex Schindler (o maior de todos e o mais importante, pois também argumentista e realizador), Braga Neto, David Singer, Palma Netto, Winston Carvalho, que financiaram filmes para Glauber Rocha, Roberto Pires, entre outros. E algumas empresas se estabeleceram (Iglu, Polígono, Winston Cine Produções, a de Palma Netto...). O sucesso do Ciclo atraiu para o deslumbrante décor baiano, cineastas do eixo Rio-São Paulo e estrangeiros que, aqui chegando, ficaram encantados com tanta luminosidade. No meio de tudo isso, movimentava-se Oscar Santana.

Que tem um longa no Ciclo Bahiano de Cinema: O Caipora (1963), filme produzido por Winston Carvalho, com um elenco da terra: Carlos Petrovich, Milton Gaúcho, Maria Conceição, Adélia Prado, Leonel Nunes, entre outros. A preocupação temática de Oscar Santana seguia a linha do social predominante na época: a procura da abordagem de problemas referentes ao drama do homem brasileiro. Petrovich faz o papel-título, o de um homem amaldiçoado pelo azar, considerado “caipora”, uma pessoa rejeitada no seu meio interiorano, que acaba por se enredar no amor proibido: apaixona-se pela bela filha do coronel (Gaúcho tem, aqui, um de seus momentos memoráveis com este desempenho de “homem-mau”). A fotografia capta a luz com grande maestria. O Caipora, exibido em dois cinemas soteropolitanos -vi-lo no antigo Tupy e fiquei admirado com a iluminação e o preto e branco - fez sucesso.

Foi preciso esperar quase 12 anos para Oscar Santana poder realizar o seu segundo longa: O Pistoleiro, que reflete o drama de um homem condenado a ser um matador profissional.A artesania de Oscar Santana, sua acuidade na construção da narrativa, a preocupação em bem contar a história através dos elementos da linguagem cinematográfica, estão bem marcadas em O Pistoleiro.
Que, lançado no auge da Embrafilme, teve, nesta, o impulso distribuidor tão necessário à circulação dos filmes, pois não adianta produzir se o filme ficar pronto, se não se tem uma distribuidora eficiente para marcá-lo em boas salas de exibição.Entre O Caipora e O Pistoleiro, abriu a Sani e neste interregno nunca parou de fazer cinema. Até que, em 1982, produziu o premiado O Mágico e o Delegado para Fernando Cony Campos (baiano de Castro Alves) dirigir. Com muitos projetos na cabeça, Oscar Santana não pára. Pioneiro do cinema baiano, conseguiu, com êxito, ultrapassar todos os obstáculos e continuar em ação.Oscar Santana é, por assim dizer, um homem-cinema, porque da sétima arte entende de tudo.

TRIBUTO A OLNEY SÃO PAULO

O criador de "O grito da Terra" Olney São Paulo

André Setaro


Recebo do jornalista e crítico de cinema Dimas Oliveira esta notícia bem alvissareira: Feira de Santana vai prestar um tributo a Olney São Paulo na passagem de seu aniversário. O cineasta, ainda que nascido em Riachão de Jacuípe, morou muito tempo em Feira, onde encontrou produção para o seu primeiro longa-metragem, O grito da terra, obra importante do Ciclo Baiano de Cinema, realizada em 1964 e que aqui em Salvador foi lançada no cine Excelsior, quando a vi pela primeira e única vez, a guardar na memória a sua belíssima fotografia em preto e branco, as imagens áridas do sertão e a partitura de Fernando Lona. O filme, ao que parece, desapareceu. Mas vou procurar melhor saber.


"Homenagem póstuma para manter viva na lembrança de Feira de Santana a obra do cineasta. Assim é que vai ser realizado Tributo a Olney São Paulo. Será na sexta-feira, 7 de agosto, às 20 horas, na Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL). A realização é da Prefeitura de Feira de Santana, através da Secretaria de Cultura, Esporte Lazer e da Fundação Cultural Municipal Egberto Tavares Costa, e da Fundação Senhor dos Passos, através do Núcleo de Preservação da Memória Feirense. A justificativa é marcar os 73 anos de idade que Olney completaria se estivesse vivo.


Neste ano, foi completado o 31º ano de seu falecimento. "O propósito é que não se perca um ícone da memória da cidade e que sua obra seja discutida por especialistas", como diz o jornalista Dimas Oliveira, que está coordenando o evento. Para o coordenador, o objetivo é "manter viva na lembrança de Feira de Santana a obra de Olney São Paulo", também, "o fomento da cultura cinemato gráfica, através da pesquisa, do estudo, do intercâmbio, bem como da preservação da memória".No programa formatado, com a participação dos filhos Ilya São Paulo e Olney São Paulo Júnior, exposição de fotos, exibição de filmes do cineasta, painel com Regina Machado ("Trajetória Histórica do Cineasta"); José Umberto, Roque Araújo e Tuna Espinheira ("Importância de Olney São Paulo"); e André Setaro ("Olney em Visão Crítica").

quarta-feira, 15 de julho de 2009

LANÇAMENTOS


A EVOLUÇÃO DA LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA


Beto Magno

Da câmara fixa, parada, dos tempos dos Irmãos Lumiére e de George Méliés, passando pela sistematização da linguagem cinematográfica com David Wark Griffith (O nascimento de uma nação, 1914, Intolerância, 1916), o cinema, que completou o seu centenário em 1995, sofreu, na sua trajetória, várias transformações em seu estatuto da narração. Do reinado da arte muda, quando se pensou o cinema ter alcançado a sua essência como linguagem, passando pela introdução do som - que, inegavelmente, modificou a arte do filme, a linguagem cinematográfica recebeu, na sua trajetória, influências da tecnologia, incorporando seus avanços. As inovações tecnológicas favoreceram a ruptura dos esquemas tradicionais (produtivos e expressivos) e a difusão de usos do cinema que, anteriormente, tinham sidos feitos só em caráter excepcional (as vanguardas históricas e certos momentos heróicos do neorrealismo).Incorporando os avanços tecnológicos, o cinema conseguiu sair da supremacia da montagem para a profundidade de campo - a invenção das objetivas com foco curto permitiram a um Welles a ousadia de uma renovação estética em Cidadão Kane, ponto de partida da linguagem do cinema moderno.

A profundidade de campo permitiu a utilização de filmagens contínuas sem a excessiva fragmentação da montagem anterior. Com a profundidade de campo,anuncia-se, uma década depois, a eclosão do modelo de Michelangelo Antonioni que, com sua trilogia A aventura - A noite - O eclipse deu ao cinema uma nova maneira de pensar e um estilo de representar.
O fracionamento deu lugar a demoradas incursões da câmera dentro da tomada, permitindo, com isso, maior poder de captar a alma humana nos seus devaneios e nas suas angústias como, também, com Roberto Rossellini, assaltar com a câmera o momento histórico, o instante real. A instalação da película pancromática (aquela dotada de maior sensibilidade) e a difusão de câmeras mais fáceis de manobrar mudaram a face do cinema e foram fatores que contribuíram para o advento do chamado cinema moderno. A câmera na mão, que veio a facilitar a apreensão da realidade, surgindo o cinema-verité, é uma conseqüência da tecnologia.

A película pancromática, por mais sensível, fez com que os realizadores saíssem dos estúdios fechados e se intrometessem, com suas câmeras, nos exteriores mais recônditos, descobrindo, com isso, um cinema mais verdadeiro porque menos artificial. A tecnologia determinou uma evolução da linguagem cinematográfica?
Evidentemente que a tecnologia determina uma transformação da linguagem cinematográfica, ainda que não venha a provocar a revolução estética que se verificou quando da passagem do cinema mudo para o sonoro. A tecnologia encontra-se , por exemplo, hoje, tão evoluida, que provoca no espectador uma impressão de realidade antes impossível de ser verificada (os dinossauros de verdade dos filmes de Spielberg: O parque dos dinossauros e O mundo perdido). Tem-se a estética cinematográfica quando a técnica se conjuga com a linguagem , instaurando-se, aí, o ato criador.

Se o cinema nasceu em 28 de dezembro de 1895, com a projeção pública do cinematógrafo efetuada pelos Irmãos Lumiére, a linguagem cinematográfica somente veio a se consolidar, no entanto, vinte anos depois, em 1914/15 com O Nascimento de uma nação (The birth of a nation), de David Wark Griffith. Entre o seu nascimento e a consolidação de sua linguagem, o cinema passou por uma série de de gradações evolutivas, com o descobrimento, aos poucos,dos elementos determinantes de sua especificidade como linguagem sem língua. Um cinegrafista de Lumiére, Promio, andando numa gôndola em Viena, e observando o casario, inventou o travelling.

Griffith em alguns curtas da Biograph ofereceu a expressão definitiva ao close-up. Edwin S. Porter, com sua narrativa ainda balbuciante, tenta a montagem e o enquanto isso que viria a desencadear um elo importante para a construção da linguagem cinematográfica.
O fato é que a linguagem fílmica nasce a partir do momento em que se constatou que a câmera podia sair do lugar, que podia se movimentar, mover-se, dando origem, com isso, à mudança do ângulo visual. Outra conquista importante veio com a constatação pelos ingleses da escola de Brighton de que, para contar uma história, é preciso inserir um primeiro plano, um close-up, dentro de um plano geral, nascendo, com isso, a montagem. O grande sistematizador, porém, é David Wark Griffith, o pai da linguagem cinematográfica sem a qual, aliás, o cinema não existiria como é hoje praticado.

O próprio Serguei Eisenstein deve muito a Griffith. Este, no frigir dos ovos, é muito mais importante do que o soviético, pois o grande criador, o inventor genial, o sistematizador preciso. Esta descontinuidade real do cinema e que se transforma numa impressão de continuidade, de fluxo contínuo, é resultado de uma abstração inconsciente da linguagem cinematográfica pelo espectador. Este, acostumado aos filmes, absorve os seus truques de linguagem, contando que esta não fuja da padronização à qual está acostumado. O que significa dizer: se, antes, para fazer que o público compreendesse que um personagem estava se lembrando do passado era preciso a utilização de fumacinhas e de diversos artifícios - nunca o corte direto presente/passado como num flash-back moderno, o cinema da contemporaneidade abdica de qualquer artifício no sentido explicativo. Os lances de memória que tornaram incompreensível O ano passado em Marienbad (1961), de Alain Resnais, hoje estão sendo utilizados na publicidade televisiva. O puzzle proposto por Welles em Cidadão Kane é perfeitamente identificável em fitas desta suposta pós-modernidade.

Conta-se, entretanto, o caso de uma moça da Sibéria que, em visita a Moscou, julgou horrível o primeiro filme (uma comédia) que tinha visto em sua vida, porque "seres humanos eram despedaçados, as cabeças jogadas para um lado, os corpos para outro". Equando Griffith mostrou os primeiros close-ups em um cinema, e uma imensa cabeça decapitada sorriu para o público, houve pânico na platéia. Aliás, quando da primeira projeção do cinematógrafo dos Lumiére, em 1895, um trem que se dirigia à câmera determinou que algumas pessoas, ainda que a pequenez da tela, o preto-e-branco nem tão real assim, se escondessem assustadíssimas, debaixo das cadeiras - com medo de o trem sair da tela e esmagá-las. Em dois filmes de 1948, Laurence Olivier (Hamlet) e Alfred Hitchcock (Festim diabólico/Rope) eliminam o corte, substituindo a descontinuidade das imagens por uma circulação incessante da câmera, que soluciona a velha contradição entre cinema e teatro. Em Crises d'alma(Cronaca de un amore), Michelangelo Antonioni também renova a estrutura fílmica pela valorização da construção formal pelo movimento no interior de longas sequências e não mais pelo movimento de plano a plano.

Glauber Rocha também valoriza a construção formal pelo movimento no interior de longas sequências, ainda que Terra em transe seja filme de montagem sincopada, de planos curtos, com influência clara do cinema investigativo de Welles. A maioria dos filmes de Glauber Rocha, no entanto, revela um predomínio do plano-sequência - ao invés de ser dividida em cenas e diversos planos é feita numa única tomada. Isso levou Marcel Martin, ensaísta francês, a pensar numa transformação do cinema contemporâneo, transformação que começou com a desdramatização praticada por Michelangelo Antonioni, nos anos 50, e o aparecimento da câmera móvel que possibilitou o cinema-verité.

Segundo o grande Marcel Martin em seu fundamental A linguagem cinematográfica (Brasiliense, 1990): "O cineasta tende cada vez menos a decupar seu filme demaneira a destacar uma série unilinear e inequívoca de acontecimentos; já não sublinha por meio de montagem ou de movimentos de câmera aquilo sobre o que ele deseja fixar a atenção do espectador; a câmera não desempenha mais o seu papel habitual de nos dar o ponto de vista de uma testemunha virtual e privilegiada sobre todos os acontecimentos, facilitando, assim, o trabalho perceptivo e estimulando a preguiça intelectual do espectador (...) O abandono da linguagem concebida como conjunto de procedimentos de escrita ligados à técnica, tal como era praticada por Eisenstein ou Welles, é, portanto, acompanhada de uma rejeição do espetáculo, noção ligada à da direção (...) Passamos a um outro plano: o cinema de roteiristas cede espaço ao cinema de cineastas. O cinema não mais consiste essencialmente em contar uma história por meio de imagens, como outros o fazem por meio de palavras ou notas musicais: consiste na necessidade insubstituível da imagem, na preponderância absoluta da especificidade visual do filme sobre seu caráter de veículo intelectual ou literário.

Nos filmes decididamente "modernos", o espectador não mais tem a impressão de estar assistindo a um espetáculo inteiramente preparado, mas de estar sendo acolhido na intimidade do cineasta, de estar participando com ele da criação: diante desses rostos quese oferecem, desses personagens disponíveis, desses acontecimentos em plena constituição, desses pontos de interrogação dramáticos, o espectador conhece a angústia criadora."

Tempo e diegese
O paradoxo do tempo, segundo a Filosofia, reside na existência de dois passados: o passado que desapareceu e o passado que permanece como parte integrante do presente, gravado na memória e essencialmente criador. O passado que se encontra em cada um - qual uma madeleine a esperar a busca do tempo perdido. Tal paradoxo ganhou, no cinema, aspectos mais radicais. Nele, a noção de tempo é extremamente ambígua, porque não existe um único tempo, mas vários tempos mantendo entre si relações estreitas, e que só podem ser separados por uma operação do espírito.Distinguem-se, no filme: o tempo real (ou o tempo físico: duração cronométrica da projeção); o tempo psicológico (duração subjetiva da fábula narrada: um dia, meses, anos); e o tempo dramático (ou narrativo: tempo verbal em que transcorre a história/fábula: presente, passado ou futuro).Objetivamente, a rigor, o filme é um tributário do passado, mas de um passado que se refaz cada vez que o filme é projetado na tela. Mesmo que sua ação decorra no presente só existiu, esta ação, de fato, durante a filmagem, daí a aparente falsidade do presente cinematográfico, um presente virtual que, na realidade, é um passado.
Em 2001, Uma odisséia no espaço (2001: A space odyssey, 1968), de Stanley Kubrick, há, por meio de um corte direto, a passagem de milhares de anos, quando um grande macaco, levantando-se, joga, com força, um enorme osso para o ar e este osso, no corte, transforma-se numa nave espacial. Se a projeção de A família (La famiglia, 1987), de Ettore Scola, dura pouco mais de 130 minutos, seu tempo real, físico, o seu tempo dramático, narrativo, no entanto, compreende mais de 80 anos na vidade um velho senhor que, na Itália, constituiu grande família.

Para estudar melhor o assunto, a filmologia - nova ciência que estuda a influência do filme sobre o espectador e estabelece as bases psicológicas que o aproximam ou afastam da ação desenrolada na tela - criou o termo diegese. A diegese refere-se a tudo que pertence, no processo intelectivo, à história contada no filme, ao mundo fabulístico sugerido ou pretendido pela ficçãocinematográfica. A diegese, portanto, abarca o mundo ficcional apresentado pelo filme e tudo o que esse mundo implica, se fosse tomado como verdadeiro.

domingo, 12 de julho de 2009


A MONTAGEM COMO FUNDAMENTO DA EXPESSÃO CINEMATOGRÁFICA


Por Beto Magno

A Montagem Intelectual ou Ideológica: operação com um objetivo mais ou menos descritivo que consiste em aproximar planos a fim de comunicar um ponto de vista, um sentimento ou um conteúdo ideológico ao espectador.

Eisenstein escreveu na justificativa de sua montagem de atrações: "uma vez reunidos, dois fragmentos de filme de qualquer tipo combinam-se inevitavelmente em um novo conceito, em uma nova qualidade, que nasce, justamente, de sua justaposição (...) A montagem é a arte de exprimir ou dar significado através da relação de dois planos justapostos, de tal forma que esta justaposição dê origem à idéia ou exprima algo que não exista em nenhum dos dois planos separadamente. O conjunto é superior à soma das partes".Amparado nestes ditos de Eisenstein, há de se ver que, no cinema, como em quase todos os ramos das ciências, quando se reúne elementos (no sentido amplo) para obter um resultado, este é freqüentemente diferente daquele que se esperava: é o fenômeno dito de emergência.


Aprende-se, por exemplo, em biologia, que pai e mãe misturam seu patrimônio hereditário para criar uma terceira personagem não pela soma desses dois patrimônios, mas, ao contrário, pela combinação deles em um novo patrimônio inédito. Em química, sabe-se ser possível misturar dois elementos em quaisquer proporções, mas não é possível combiná-los verdadeiramente em um corpo novo se não tem proporções perfeitamente definidas (Lavoisier). Da mesma forma, na montagem de um filme, os planos só podem ser reunidos numa relação harmoniosa.A montagem ideológica consiste em dar da realidade uma visão reconstruída intelectualmente. É preciso não somente olhar, mas examinar, não somente ver, mas conceber, não somente tomar conhecimento, mas compreender. A montagem é, então, um novo método, descoberto e cultivado pela sétima arte, para precisar e evidenciar todas as ligações, exteriores ou interiores, que existem na realidade dos acontecimentos diversos.A montagem pode, assim, criar ou evidenciar relações puramente intelectuais, conceituais, de valor simbólico: relações de tempo, de lugar, de causa, e de conseqüência. Pode fazer um paralelo entre operários fuzilados e animais degolados, como, por exemplo, em A Greve (1924), de Eisenstein. As ligações , sutis, podem não atingir o espectador. Eis, aqui, um exemplo da aproximação simbólica por paralelismo entre uma manifestação operária em São Petersburgo e uma delegação de trabalhadores que vai pedir ao seu patrão a assinatura de uma pauta de reivindicações (exemplo extraído do filme Montanhas de ouro, do soviético Serge Youtkévitch).- os operários diante do patrão- os manifestantes diante do oficial de polícia- o patrão com a caneta na mão- o oficial ergue a mão para dar ordem de atirar- uma gota de tinta cai na folha de reivindicações- o oficial abaixa a mão; salva de tiros; um manifestante tomba.A experiência de Kulechov demonstra o papel criador da montagem: um primeiro plano de Ivan Mosjukine, voluntariamente inexpressivo, era relacionado a um prato de sopa fumegante, um revólver, um caixão de criança e uma cena erótica.


Quando se projetava a seqüência diante de espectadores desprevenidos, o rosto de Mosjukine passava a exprimir a fome, o medo, a tristeza ou o desejo. Outras montagens célebres podem ser assimiladas ao efeito Kulechov: a montagem dos três leões de pedra - o primeiro adormecido, o segundo acordado, o terceiro erguido - que, justapostos, formam apenas um, rugindo e revoltado (em O Encouraçado Potemkin, 1925, de Eisenstein); ou ainda a da estátua do czar Alexandre III que, demolida, reconstitui-se, simbolizando assim a reviravolta da situação política (em Outubro).O que Kulechov entendia por montagem se assemelha à concepção do pioneiro David Wark Griffith, argumentando que a base da arte do filme está na edição (ou montagem) e que um filme se constrói a partir de tiras individuais de celulóide. Pudovkin, outro teórico da escola soviética dos anos 20, pesquisou sobre o significado da combinação de duas tomadas diferentes dentro de um mesmo contexto narrativo. Por exemplo, em Tol'able David (1921), de Henry King, um vagabundo entra numa casa, vê um gato e, incontinente, atira nele uma pedra. Pudovkin lê esta cena da seguinte forma: vagabundo + gato = sádico. Para Eisenstein, Pudovkin não está lendo - ou compreendendo o significado - de maneira correta, porque, segundo o autor de A Greve a equação não é A + B, mas A x B, ou, melhor, não se trata de A + B = C, porém, a rigor, A x B = Y.

Eisenstein considerava que as tomadas devem sempre conflitar, nunca, todavia, unir-se, justapor-se. Assim, para o criador da montagem de atrações, o realizador cinematográfico não deve combinar tomadas ou alterná-las, mas fazer com que as tomadas se choquem: A x B = Y, que é igual a raposa + homem de negócios = astúcia. Em Tol'able David, quando Henry King corta do vagabundo ao gato, tanto o primeiro como o segundo figuram proeminentemente na mesma cena. Em A Greve (Strike), quando Eisenstein justapõe o rosto de um homem e a imagem de uma raposa (que não é parte integrante da cena da mesma forma que o gato o é em Tol'able David, porque, para King, o gato é um personagem),esta é uma metáfora.Em Estamos construindo (Zuyderzee, 1930), de Jori Ivens, várias tomadas mostram a destruição de cereais (trigo incendiado ou jogado no mar) durante o débacle de 1929 da Bolsa de Valores de Nova York, a depressão que marcou o século XX. Enquanto apresenta os planos de destruição de cereais, o realizador alterna -os com o plano singelo de uma criança faminta. Neste caso, o cineasta, fotografando uma realidade, recorta uma determinada significação.

Os planos fotografados por Jori Ivens podem ser retirados da realidade circundante, mas é a montagem quem lhes dá um sentido, uma significação. Os cineastas soviéticos, como Serguei Eisenstein e Pudovkin, procuravam maximizar o efeito do choque que a imagem é capaz de produzir a serviço de uma causa.Considerada a expressão máxima da arte do filme, a montagem, entretanto, vem a ser questionada na sua supremacia como elemento determinante da linguagem cinematográfica com a introdução - em fins dos anos 30 - das objetivas com foco curto que permitiu melhorar as filmagens contínuas - a câmera circulando dentro do plano - com uma potenciação de todos os elementos da cena e com um tal rendimento da profundidade de campo (vide Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, Os melhores anos de nossas vidas, 46, de William Wyler) que possibilitou tomadas contínuas a dispensar os excessivos fracionamentos da decupagem clássica. A tecnologia influi bastante na evolução da linguagem fílmica, dando, com o seu avanço, novas configurações que modificam o estatuto da narração - o próprio primeiro plano - o close up - tão exaltado por Bela Balazs como "um mergulho na alma humana" - com o advento das lentes mais aperfeiçoadas já se encontra, esteticamente, com sua expressão mais abrangente e menos restrita.